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A recriação do Ministério das Comunicações, entregue por Bolsonaro ao deputado Fábio Faria, membro do “centrão”, foi justificada pela parlamentar bolsonarista Alê Silva como sendo “o preço do jogo” . Descrição primorosa. Mas qual é o “jogo”? O que teria alterado o “preço do jogo”?
Impossível deixar de pensar no economista Douglass North, que com acuidade ensinou que as “regras do jogo” nada mais são do que as instituições, formais e informais, que regem as interações entre as pessoas em uma sociedade, definindo os incentivos presentes nas relações políticas, sociais ou econômicas. A qualidade dos resultados do “jogo” varia de acordo com os objetivos que nortearam a criação das suas regras, e há motivos de sobra para nos preocuparmos com o futuro tanto da democracia como do desenvolvimento econômico e social do país.
Bolsonaro, exemplo cristalino do pensamento autocrático, nunca escondeu sua insatisfação com a redemocratização do país. Seu desejo é trazer de volta a “ordem”, ainda que para tanto tenha que produzir o caos. Obstáculos aos seus planos são inimigos a serem desacreditados ou extirpados. Dentre eles estão a imprensa, o Supremo Tribunal Federal, os movimentos de resistência democrática, os que pensam diferente. Esse é o jogo que vem mostrando sua face cada vez mais sombria.
Desde a posse, Bolsonaro vem se dedicando, com afinco e método, a corroer as regras do jogo democrático, como explica Marcos Nobre no seu livro “Ponto-final: a guerra de Bolsonaro contra a democracia”. Escolhe a dedo ministros para ocupar pastas cruciais de maneira a torná-las disfuncionais. É o que tivemos durante mais de um ano na Educação, com um titular que encarnava a negação de tudo o que se conhece por cultura e educação. O ministro do Meio Ambiente maquina astúcias para facilitar o desmatamento, o das Relações Exteriores empurra o país para o limbo do cenário internacional, e assim se esvai a capacidade de o governo cumprir seu papel, que é entregar serviços públicos de qualidade tendo em vista o bem comum, criando terreno fértil para populistas radicalizarem adiante…
Dantesco é o caso do Ministério da Saúde. Antes da chegada da pandemia, o ministro, um médico competente e atento ao que ocorria na Ásia e Europa, desenhara junto com a equipe um plano estratégico, coordenado com os estados, para enfrentá-la. Mas, incapaz de lidar com uma crise de tal porte, e menos ainda de testemunhar o sucesso de um ministro popular, Bolsonaro o demitiu. O segundo médico nomeado não chegou a permanecer um mês no cargo, tendo sido substituído interinamente por um general, sem relação com a área médica. Cercou-se de duas dúzias de militares e, ligeiro, tentou interromper a divulgação e alterar a contagem dos mortos, gerando estupefação e forte reação. A interinidade do militar já dura um mês e, além da liberalização do uso da cloroquina (remédio sem eficácia comprovada contra o coronavírus), pouco foi feito para reduzir os efeitos da pandemia, que já provocou mais de 46 mil mortes e está longe do fim. Chega a ser macabro, senão criminoso, esse descaso com a crise sanitária que devasta o país. Outras mudanças alarmantes estão em curso.
Cristina Pinottié graduada em administração pública pela EAESP-FGV e cursou o doutorado em economia na FEA-USP. É sócia da A.C. Pastore & Associados desde 1993. Antes trabalhou nos departamentos econômicos do BIB-Unibanco, Divesp e MB Associados. Concentra seus trabalhos na análise da macroeconomia brasileira, com ênfase em temas da política monetária, relações do país com a economia internacional, e planos de estabilização. Nos últimos anos tem se dedicado ao estudo da teoria da corrupção e da história da operação Mãos Limpas, na Itália. É autora de diversos artigos e livros. Escreve mensalmente às sextas-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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