Coluna

Luciana Brito

Sambamos sangrando: silêncios e dores de dezembro de 2020

07 de dezembro de 2020

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Uma das coisas mais tristes da atual realidade é a impossibilidade de confraternizar e trocar afetos, de manifestar tanto nossa alegria quanto nossas dores

Em 2 de dezembro comemoramos o Dia do Samba , data que se tornou nacional mas começou em Salvador. Assim como quase tudo no Brasil, e a capital baiana não foge à regra, é dedicada a um homem branco, o músico Ary Barroso. Ele foi homenageado pela Câmara de Vereadores de Salvador em 1940, quando visitou a Bahia pela primeira vez. Poderia ser Riachão, grande sambista baiano, a receber uma homenagem que celebrasse o Dia do Samba. Mais tarde, poderia ser até mesmo Ederaldo Gentil, Edil Pacheco, Gal do Beco, as sambadeiras de Itapuã ou a doutora do Samba, Dona Dalva Damiana, sambista de Cachoeira. Também poderia ser uma homenagem a Ernesto Joaquim Maria dos Santos, o Donga, carioca que escreveu o primeiro samba de que se tem registro, em 1916 – “Pelo telefone” narra a história da perseguição policial aos chamados “jogos de azar” e na verdade toda prática de cultura e diversão da população negra no pós-abolição, assim como a capoeira, os sambas, as festas, os batuques e os candomblés.

O fato é que este ano não foi possível “deixar as mágoas para trás” numa boa roda de samba, e portanto só nos restou conviver com elas. Com a pandemia, e com justa razão, não houve celebração do Dia do Samba, e a cidade de Salvador amanheceu em silêncio. Além das vidas que se vão, e da desigualdade que se aprofunda, uma das coisas mais tristes que a nova realidade nos impôs é a impossibilidade de confraternizar, de estar com as pessoas queridas, de trocar afetos e abraços, assim como manifestar tanto a alegria quanto a dor, da forma mais espontânea que desejarmos.

Falando de samba, nele estão dores inomináveis, tanto aquelas de amor quanto aquelas causadas pela falta de emprego, pela falta de dinheiro, pela desesperança ou pela saudade. Como diz Dona Dalva, “pobre quando deita sonha”, e foi assim, sonhando, dançando e cantando, que as populações negras brasileiras muitas vezes expressaram seus sentimentos e opiniões sobre o que acontecia no país e sobre o impacto das decisões dos poderosos em suas vidas. Por falar em Dona Dalva, quem já escutou sua composição “Jiló”, saberá que ali está a narrativa de uma mulher que vive o dilema de comer o fruto amargo que ainda assim alimenta, ao mesmo tempo em que se preocupa com o sustento dos filhos deixados em casa sozinhos enquanto ela cumpria sua jornada de trabalho numa fábrica de charutos do Recôncavo baiano.

O sambista Candeia também registrou nos seus sambas o desespero de um homem negro sem trabalho: “Se subires lá no morro e ver o crioulo zangado podes crer que o irmãozinho se acha desempregado”. Como sempre, de forma magistral, Candeia também chamou a população negra brasileira para sonhar a possibilidade de um reinado negro para além do carnaval, mas por meio da educação. Foi isso que ele disse na música “Dia de Graça”: “Deixa de ser rei só na folia e faça da sua Maria uma rainha todos os dias. E cante um samba na universidade e verá que seu filho será príncipe de verdade. E aí então, jamais tu voltarás ao barracão”.

Jovelina Pérola Negra cantou a superação e o recomeço de uma mulher negra brasileira, de classe popular, que busca nela mesma a força potente da alegria para fugir do sofrimento e da depressão: “Logo eu com meu sorriso aberto, o paraíso certo pra vida melhorar. Malandro desse tipo que balança mas não cai, de qualquer jeito vai ficar bem mais legal pra nivelar vida em alto astral.” Dona Ivone Lara, decididamente, nos ensina a não vacilar e seguir em frente: “Acreditar? Eu não. Recomeçar? Jamais”.

Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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