Coluna

Cristina Pinotti

O PIB e a necessária valorização dos afazeres domésticos

25 de fevereiro de 2021

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A quantidade de horas gastas com essas ocupações têm impacto sobre o desempenho econômico de um país; e é preciso conhecê-las em detalhes para a proposição de políticas públicas adequadas

A pandemia tem nos obrigado a encarar lados obscuros da realidade. Se os cientistas foram exemplares na cooperação para o rápido desenvolvimento de vacinas eficazes contra o Sars-CoV-2, a sua produção e distribuição revelam ausência de coordenação internacional, com prejuízo para todos. Ficaram expostas as trágicas consequências da incompetência dos governantes, da desigualdade de renda, da precariedade dos serviços públicos etc. Há, ainda, aspectos mais sutis, que merecem ser discutidos. Falo, aqui, da importância e do peso dos afazeres domésticos nas vidas das pessoas, e na geração e mensuração da riqueza do país.

O isolamento social, o fechamento de escolas e as intermitentes proibições de abertura de restaurantes, bares e lojas necessários para enfrentar a pandemia aumentaram a já elevada carga de trabalhos domésticos que, por mais surpreendente que pareça, não são computados no PIB (Produto Interno Bruto). Quando a limpeza da casa e das roupas; o preparo das refeições; o cuidado com os filhos, os idosos, as pessoas com deficiência e os familiares doentes são exercidos por terceiros, o valor da sua remuneração entra no PIB. Porém, quando exercidas por alguém da própria família, as mesmas atividades não são remuneradas, não sendo computadas nas contas nacionais. A justificativa é de que, se os serviços domésticos não forem prestados em casa, não serão vendidos, não fazendo parte, assim, do mercado. As pessoas que exercem apenas afazeres domésticos não são incluídas na força de trabalho (população economicamente ativa), sendo classificadas como população inativa. Assim, o PIB cai com a paralisação de muitos serviços, mas não cresce com o aumento do trabalho doméstico que os substitui, ao menos em parte.

Tal paradoxo levou Paul Samuelson a criar, há mais de 50 anos, a seguinte piada, que também é uma crítica às limitações das contas nacionais: se um homem se casar com a sua empregada doméstica, o PIB cai. Relevando-se a carga de preconceitos da frase do prêmio Nobel de economia, permanece a sua virtude de ressaltar uma das tantas falhas do PIB como medida de bem-estar dos países.

É crescente, no mundo, a tendência a mensurar e entender os fatores que determinam esses trabalhos não remunerados feitos em casa. No Brasil, a partir de 2001, a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), passou a investigá-los, classificando-os por estado, faixa etária e gênero. Com base nesses dados, o trabalho pioneiro de Hildete Melo, Claudio Considera e Alberto di Sabbato estima qual seria a participação dos trabalhos domésticos no PIB. Usam o valor médio, por hora, do que recebem as empregadas domésticas como base para a imputação da remuneração dos afazeres domésticos. Dessa maneira, entre 2001 e 2005 tais serviços acrescentariam, em média, 11,2% ao PIB de cada ano, tendo oscilado entre 10% e 11,6% no período. Atualizações feitas por Melo, Considera e Delfino encontram 11% para o ano de 2015, e média de 9% para o período entre 2001 e 2015. Em 2019, o valor correspondente a esse acréscimo médio de 9% só seria superado pelo PIB de São Paulo e do Rio de Janeiro.

A estimativa, embora correta, é conservadora. Serviços como cuidar de um doente, de uma pessoa com deficiência, ou mesmo elaborar refeições, quando prestados por especialistas, têm remuneração superior à da média das empregadas domésticas. Mas não existem dados para refinar o cálculo. Note-se, como bem argumentam os autores, que não seria correto utilizar o conceito de “custo de oportunidade” para converter em valores as horas trabalhadas em serviços domésticos. O que determina a conversão é o tipo de trabalho executado, não importando se ele é desempenhado por jornalistas, economistas, ou físicos nucleares. Sempre sobram casos saborosos a serem considerados: qual deveria ser o valor imputado às refeições elaboradas por cozinheiros(as) altamente qualificados nas suas próprias casas? Mas esses seriam pontos fora da curva, compensados por aqueles que mal conseguem fritar um ovo, e ainda assim desempenham a função.

Cristina Pinottié graduada em administração pública pela EAESP-FGV e cursou o doutorado em economia na FEA-USP. É sócia da A.C. Pastore & Associados desde 1993. Antes trabalhou nos departamentos econômicos do BIB-Unibanco, Divesp e MB Associados. Concentra seus trabalhos na análise da macroeconomia brasileira, com ênfase em temas da política monetária, relações do país com a economia internacional, e planos de estabilização. Nos últimos anos tem se dedicado ao estudo da teoria da corrupção e da história da operação Mãos Limpas, na Itália. É autora de diversos artigos e livros. Escreve mensalmente às sextas-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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