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Matheus Gomes

Por que o Brasil deve olhar com muita atenção para o Haiti

09 de julho de 2021

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A fragilidade das instituições haitianas ilumina o revés das missões da ONU conduzidas por generais brasileiros que hoje sustentam Bolsonaro

O assassinato de Jovenel Moïse, presidente do Haiti, pôs o país no centro do noticiário latino-americano desde quarta-feira (7). A essa altura, alguns suspeitos do crime já foram detidos e outros foram mortos pela Polícia Nacional. É um fato trágico que tende a ampliar a violência política na ilha, a dois meses do primeiro turno das eleições.

Através da militância no movimento negro, acompanho a situação política haitiana há mais de uma década, e afirmo sem dúvidas que a escalada de violência dos últimos quatro anos é de extrema gravidade. Também penso que a repercussão do assassinato deMoïse no Brasil foi acompanhada de uma contextualização relapsa por parte da grande imprensa. Creio que uma hipótese para explicar esse fato é a parca discussão sobre o balanço aprofundado da participação dos generais brasileiros na condução da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti, a Minustah.

Por isso resolvi compartilhar algumas análises nesta Tribuna mensal, construídas a partir da leitura do jornal haitiano Le Nouvelliste e dos últimos relatórios quadrimestrais da ONU, e também pelo acompanhamento de movimentos populares haitianos.

Primeiramente, é preciso compreender que Jovenel Moïse nunca teve apoio popular. Eleito em 2016 com a minoria dos votos – cerca de 600 mil eleitores num universo de mais de 7 milhões de votantes –, Moïse assumiu num cenário que combinava mobilizações oposicionistas e o fim da Minustah. O apoio dos EUA e da ONU sempre foi essencial para o seu governo. De orientação liberal e conservadora, Moïse se alinhou imediatamente a Donald Trump e deu sinal verde para continuidade das missões da ONU no sistema político e judiciário.

Em 2018, as perspectivas de governabilidade de Moïse acabaram quando mais de 2 milhões de haitianos – cerca de 25% da população – protestaram contra o governo. O reajuste de 51% no preço dos combustíveis equiparou o preço do salário-mínimo diário, U$ 6, ao valor do galão de querosene, U$ 5, majoritariamente usado para a energia doméstica. Na verdade, eram os efeitos econômicos imediatos da dolarização da economia haitiana, que, além de desvalorizar a moeda, ampliou a inflação, consolidou o desemprego em um terço da população e manteve o regime de superexploração do trabalho na indústria têxtil.

Nesse cenário, as mobilizações não cessaram e abriram uma sequência de quedas no comando do governo. Moïse teve sete homens no cargo de primeiro-ministro, sempre entregando os anéis para livrar os dedos. No segundo semestre de 2020, o país registrou uma média de 84 protestos mensais, a maioria amplamente reprimida pela polícia.

Noutros tempos, a ousadia dos haitianos e sua revolução anticolonial ensejou o haitianismo, o medo das elites brasileiras com a constituição de um poder negro em nossas terras

Essa postura acuada e ao mesmo tempo agressiva se complexificou com a derrota eleitoral de Trump e a proximidade das eleições, que também vão ser o momento da votação de uma nova Carta Magna. Mais uma vez, através de decretos, Moïse instaurou um Comitê Constituinte e os Comitês Eleitorais, ambas movimentações que não incluíram a fragmentada oposição.

Para além do fracasso do projeto de Moïse, a fragilidade das instituições também revela o revés das missões da ONU. Não há nada próximo de um Estado de Direito no Haiti, como havia antes do início da Minustah, em 2004. O Judiciário está aos frangalhos, convive intensamente com greves de juízes e advogados e com prisões superlotadas em 339%.

Com o aumento da violência urbana, a polícia teve o seu orçamento ampliado em 53%. No entanto, a força de segurança nacional convive com intensas divisões que já apareceram sob a forma de greves, motins e, tragicamente, pela constituição de grupos de extermínio. É importante lembrar que o Exército está em fase de reconstituição, o que dá ainda mais centralidade a essa instituição.

A pandemia aprofundou a combinação de crises. Nesse momento, cerca de 60% da população vive em condição de pobreza e 40% necessita de ajuda humanitária. É um quadro grave e o assassinato de Moïse cria um vazio de poder que aumenta a fragmentação política e favorece aventuras autoritárias de setores da frágil institucionalidade haitiana.

Existem iniciativas de organização popular e democrática como a Plataforma Haitiana pela Defesa de um Desenvolvimento Alternativo , coordenada pelo professor Camille Chalmers. Essa aliança de movimentos sociais busca superar a forte repressão do Estado e construir um projeto pautado na solidariedade internacional para superar o quadro de dependência externa política e econômica. Inspirados na trajetória revolucionária desta nação que foi a primeira a se libertar do julgo da escravidão colonial, os movimentos insistem que o Haiti deve ser autônomo e independente.

Penso que o povo brasileiro deveria acompanhar de perto a situação haitiana. Noutros tempos, a ousadia dos haitianos e sua revolução anticolonial ensejou o “haitianismo”, o medo das elites brasileiras com a constituição de um poder negro em nossas terras. Mais recentemente, a ilha também foi paradigmática para o reacionarismo que nos governa. Foi lá que a geração de generais que sustenta Bolsonaro teve a sua experiência de governança seminal. O Haiti foi laboratório destes homens responsáveis pelo genocídio em curso em nosso país. Tal fato também nos obriga a fazer um balanço crítico de Lula e o PT, pois já temos elementos para afirmar que assumir a Minustah foi um erro grave. É trágico admitir que Caetano e Gil foram proféticos. Toda minha solidariedade ao povo haitiano. Resistiremos!

Matheus Gomes

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