Coluna

Luciana Brito

Crianças encantadas e o alfabeto da escravidão

20 de setembro de 2021

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A banalização do sofrimento negro e a forma descuidada como as histórias da infância negra são contadas desde que o Brasil é Brasil nos trouxeram ao ponto onde estamos

Na Bahia, no mês de setembro, além da chegada da primavera, celebramos também as crianças. Nem a pandemia e nem o fundamentalismo religioso são mais fortes do que a fé na força dos ibejis e dos erês yorubanos, e também dos santos Cosme e Damião do catolicismo negro. Doces, quartinhas coloridas e pratos de carurus são distribuídos mantendo a tradição, que ganha outra importância no momento atual de fome. O dia 27 de setembro é dia de celebrar a potência infantil, a inocência, a palavra solta, os segredos que não são guardados, as brincadeiras e o sorriso aberto. Na diáspora negra, onde os espíritos infantis são celebrados, esse é o momento não só de cultuar a alegria, mas de nutrir nossas crianças internas, que habitam dentro de nós, nunca envelhecidas. Essa criança, sabemos, ri, brinca, mas também chora, às vezes.

Repercutiu amplamente a forma como a escravidão no Brasil foi retratada no livro “ Abecê da Liberdade , reimpresso no ano passado pela editora Companhia das Letras, publicado pela primeira vez em 2015 pela editora Objetiva. Em 2020, após a morte de George Floyd, viu-se uma profusão de debates e publicações sobre tudo que dizia respeito à negritude e ao racismo. Na corrida para atender a essa demanda política, mas também mercadológica, a história de Luiz Gama menino acabou ganhando versão que se distancia de tudo aquilo que diz a historiografia da escravidão e pesquisas sobre educação étnico-racial a respeito da abordagem de questões consideradas sensíveis na sociedade brasileira.

Desde a implementação da lei 10.639/2003 , uma conquista do movimento negro brasileiro, criou-se um amplo mercado para autores negros, mas sobretudo brancos, para a produção de livros que tragam pessoas negras como protagonistas das suas estórias, e histórias. Porém, debate concomitante e mesmo anterior, foi aquele que apontava para a qualidade destas representações, uma vez que, a depender da forma como crianças negras fossem representadas nos livros didáticos, o resultado poderia ser nefasto. Isso porque, além de distorções históricas, pesquisadoras e pesquisadores da área de educação chamavam atenção para a forma desumanizante, humilhante e submissa com a qual pessoas negras sempre apareceram nas páginas dos livros brasileiros, perpetuando estereótipos. A professora Dra. Ana Célia Silva, docente da Universidade do Estado da Bahia e militante do movimento negro, foi pioneira nesse tipo de estudo. Ela afirma no livro “A discriminação do negro no livro didático”, que determinadas representações podem afetar “a construção da autoestima e autoconceito da criança negra, para a aceitação e integração com as crianças pertencentes à sua raça/etnia, uma vez que a internalização de uma representação inferiorizada pode produzir a auto-rejeição e a rejeição ao seu outro assemelhado, bem como para o reconhecimento e respeito do negro por parte dos indivíduos de outras raças/etnias.”

Portanto, desde a década de 1980, pelo menos, estudos e pesquisas têm apontado que o livro didático deve cumprir protocolos, métodos e muita, muita sensibilidade e cuidado ao tratar de questões relacionadas à escravidão, racismo e representações de crianças negras. Podemos dizer que hoje dispomos de muitos artigos, livros, teses e reflexões que nos permitem produzir materiais didáticos de qualidade impecável, e que cumprem seu papel de construir uma sociedade na qual crianças negras podem se ver em diversos livros de forma saudável e segura, proporcionando alegria e orgulho de serem o que são.

Na minha experiência de docente de um curso de licenciatura em história de uma universidade pública, a forma como falamos sobre escravidão com as crianças é tema corrente na sala de aula, nas quais as/os discentes são futuros professores e professoras. Com base nessas pesquisas e daquilo que vem sendo afirmado pelo movimento social negro, eu, e outros tantos e tantas colegas, afirmamos o risco de se consolidar no imaginário da criança, e portanto da sociedade, a ideia de que a história do povo negro se resume à experiência da escravidão. Ao contrário disso, devemos nadar em outra direção da história, apontando que a história das pessoas negras começa no continente africano. Milhares de anos antecederam o comércio de vidas que fez com que milhões de pessoas fossem sequestradas e escravizadas nas Américas.

Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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