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Este é mais um texto sobre fome.
A segunda-feira passada, 29 de abril de 2021, seria o último dia de vida de Bruno e Ian Barros, tio e sobrinho, de 29 e 19 anos, respectivamente. Saíram os dois naquele dia em direção a uma unidade de uma grande rede de supermercados cujas lojas encontram-se todas em pontos estratégicos da cidade de Salvador – os bairros periféricos da cidade, afinal é esse povo que mais consome comida na cidade onde mais de 80% da população é negra.
Ambos estavam desempregados. Membros da mesma família, estavam cientes das condições precárias que viviam suas mães, avós e crianças. Faltava comida, faltava o auxílio emergencial. Tomaram então uma decisão: roubar carne em uma das unidades da grande rede de supermercados. E assim foi: o plano de carregar quatro pacotes de 5kg nos corpos foi desastroso. Acabaram entrando para estatísticas de mais homens negros torturados e mortos nesse tipo de estabelecimento. As vidas dos dois acabaram custando cerca de R$ 755 (valor estimado dos quatro pacotes de carne furtados). Não bastaram as súplicas de Yan, Bruno, seus familiares e amigos aos seus torturadores, seguranças do supermercado: a família, pressionada pelos choros e pedidos de socorro das vítimas, só conseguiu levantar R$ 300, do valor de R$ 700 (e depois até mesmo R$ 10 mil, segundo reportagens) exigidos pelos seus carrascos. Yan e Bruno foram, finalmente, entregues a traficantes, para serem torturados e mortos.
Quando seus corpos foram encontrados ainda na segunda-feira, na mala de um carro abandonado, havia visíveis sinais de tortura. A imprensa, de forma ligeira, associou suas mortes ao tráfico de drogas : sabemos que esse é o código utilizado pela grande imprensa para legitimar as mortes de homens negros jovens. Se “deviam” à polícia, que morram, e de preferência, matando uns aos outros.
Mas esse não foi o caso. Ainda na segunda-feira começou a circular nas redes áudios e fotos feitos pelas vítimas e pelos seus próprios algozes , demonstrando a agonia e violência que marcaram as últimas horas de vida de Bruno e Yan, enquanto eles acionavam sua rede de familiares e pessoas amigas pedindo o dinheiro exigido pelos seguranças do estabelecimento. Diante de assassinos sedentos pelo seu sangue, não deu tempo para que levantassem a quantia necessária para salvarem suas vidas. Quando perceberam isso, repetidamente, suplicaram para não morrer.
Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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