Coluna

Luciana Brito

A Bahia (e o Nordeste) tem um jeito? Sobre o resultado das eleições

04 de outubro de 2022

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Região tem se recusado a deixar o Brasil cair na direção de um profundo abismo fundamentalista, violento e indiferente à dor dos outros

Nos dias que antecederam as eleições, estive muito atenta ao voto popular, muito. Conversei com muitas pessoas buscando entender o que estávamos pensando sobre as eleições e o que orientava nossas escolhas. De imediato, frustrando o que se esperava, não foi o Auxílio Brasil que orientou unicamente o voto dos pobres.

A escolha do voto, para a maioria das pessoas que escutei, suscitava lembranças de quando começamos a comer frango assado, queijo, iogurte e frutas como maçãs, que antes eram somente uma presença especial nas nossas mesas na véspera do natal.

As bicicletas para as crianças e suas festas de aniversário temáticas, as inesquecíveis primeiras viagens de avião ocorridas nas primeiras décadas dos anos 2000 também foram temas recorrentes ao justificar a escolha dos eleitores. Compartilhei minhas memórias de ser a companheira de viagem de diversas senhoras negras que viajavam pela primeira vez de avião quando iam visitar suas famílias em São Paulo. Não eram raras aquelas que iam ver seus netos e netas pela primeira vez. O que influenciava o voto era a nossa memória da primeira TV de LED, da reforma da casa, do emprego de carteira assinada e, claro, da entrada na universidade.

Conversei com um padeiro que escondia o broche do seu candidato por debaixo do avental para que o patrão conservador não visse.Também tive conversas rápidas com aquelas que talvez sejam as maiores cabos eleitorais das eleições: mulheres negras que, de sol a sol, carregavam bandeiras de candidatos brancos para fazer uma renda extra R$ 20, R$ 30 ou R$ 100 por alguns dias de trabalho. Elas estavam por todo lugar: Salvador, Cachoeira, Santo Amaro…

Curiosa sobre o voto dessas mulheres, perguntei a algumas delas sobre suas escolhas: “Deus me livre votar nesse homem, só tô ganhando meu dinheiro”, todas respondiam.

Mas é importante dizer que, dentre minhas/meus interlocutores, nenhum era evangélico. Outra coisa importante a se dizer é que estou na Bahia, Nordeste do Brasil.

A Bahia é uma mulher negra, reflete o que é a maioria do Brasil: negra, nordestina, pobre e popular, e talvez seja por isso que esse perfil eleitoral se refletiu na urna: o Nordeste, inclusive a Bahia, puxa o Brasil para a esquerda e nesta eleição o Nordeste mais uma vez, faz mais do que isso. O Nordeste tem se recusado a deixar o Brasil cair na direção de um profundo abismo fundamentalista, violento e indiferente à dor dos outros. O Brasil do Estado mínimo e da lei do mais forte.

Mas quero abordar dois aspectos sobre essa euforia misturada com desespero e romantização, que desde domingo (2) à noite faz com que as pessoas queiram buscar “asilo político” dos lados de cá, no Nordeste do Brasil.

A primeira coisa é que o Nordeste tem suas elites patriarcais conservadoras e até mesmo pobres que embarcam nessa onda como, por exemplo, os/as evangélicos. A pauta moral também é assunto importante por aqui, embora isso ainda não convença a maior parte do eleitorado a votar, por exemplo, no atual presidente.

Contudo, entre os mais ricos, podemos ver o mesmo que encontramos no Sul, Sudeste ou Centro-Oeste. Para tornar tudo ainda mais complexo, nas comunidades é possível encontrar a figura do pobre conservador, que adota o discurso da meritocracia e que defende que “as coisas devem voltar para seu devido lugar”.

Estive muito atenta ao voto popular. Conversei com muitas pessoas buscando entender o que estávamos pensando e o que orientava nossas escolhas

Se a Bahia, por exemplo, elegeu o presidente Lula, garantindo a ele 69,73% dos votos contra 42,81% para o presidente atual, a mesma tendência de votar na esquerda e em candidatos e candidatas dessa tendência não pode ser percebida entre os deputados federais e estaduais eleitos e eleitas. Votamos em candidates negres, mas muito pouco e não o suficiente para eleger nem mesmo uma dezena delas comprometidas com a igualdade racial. Além disso, na Bahia, diversos candidatos e candidatas brancasenegreceram nesta eleição.

Contudo, é importante dizer que a afro-conveniência de última hora do candidato ACM Neto (União Brasil) custou-lhe a vitória “certa” que era prevista já para o primeiro turno. Por fim, ele vai disputar o governo do estado num segundo turno com o novato Jerônimo Rodrigues (PT), até então um desconhecido na política e que saiu na frente.

Depois de domingo, a segunda coisa que quero dizer é que não, a região Nordeste não pode salvar o país sozinha. Isso é impossível e seria exigir demais.

Cabe pensarmos muito bem nos diversos projetos de nação existentes no país e como esses projetos de nação são completamente divergentes.

Ainda que as pesquisas eleitorais tenham demonstrado fragilidades, o fato é que o Brasil é um país conservador e as pautas morais, aparentemente para muita gente podem ser mais importantes do que a economia, o emprego, o desempenho do governo atual na condução da saúde no momento mais grave da pandemia, o corte de gastos em áreas fundamentais, como saúde, educação ou as políticas para o meio ambiente. O fundamentalismo, as ideias conservadoras, a agressividade e a lei do mais forte, legitimadas pelo machismo, pela misoginia, pelo racismo, a LGBTFobia e claro, o ódio de classe, tem orientado os votos de parcela significativa da população. Diante dessas pessoas, que são muitas, democracia, por exemplo, é algo secundário.

Assim, ao que me parece, o povo brasileiro deve melhorar por inteiro, em todas as regiões. Ou será que somos isso mesmo, depois de quase 400 anos de cativeiro negro e mais sucessivas décadas de ditadura militar, aqueles que aceitam o inaceitável? De reflexões como essa é que depende a nossa existência enquanto nação.

Esse texto meio atônito e sem respostas é fruto de alguém que, em silêncio desde domingo à noite, tem dolorosamente pensado sobre isso.

Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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