Coluna

Januária Cristina Alves

Por que é preciso (re)aprender a confiar nas instituições

27 de outubro de 2022

Temas

Compartilhe

Vemos uma miríade de histórias contadas sob a ótica de quem narra, disseminadas com uma velocidade absurda, confundindo e fazendo com que duvidemos até da nossa sanidade mental

“Era uma vez três porquinhos que moravam em casas diferentes: uma era de palha, a outra era de madeira e a outra, de tijolo. Aí veio o lobo e derrubou as casas de palha e de madeira e os porquinhos, furiosos, se vingaram dele cozinhando-o vivo. E então os três foram presos. As pessoas da cidade, que conheciam os personagens desse enredo, se dividiram: umas acharam que o lobo era culpado porque atentou contra a propriedade privada e outras, que os porquinhos não poderiam ter matado o lobo, sob nenhuma justificativa. E, assim, ninguém foi feliz para sempre.” Se você leu a síntese dessa história tão conhecida de todos nós e achou que ela estava mal contada, truncada, adulterada ou ainda, reinventada e repaginada, está 100% certo(a).

O famoso conto de fadas que tem passado de geração em geração virou mote para uma propaganda famosa do jornal inglês The Guardian, que afiança aos seus leitores que a publicação tem o compromisso de mostrar sempre a visão completa da notícia. Nada mais desafiador – para não dizer impossível – para qualquer um que queira contar uma história, seja ela real ou imaginária. Até porque cada história tem seu leitor, ouvinte ou telespectador e ela se completa somente quando ele entra em cena. Tal como no comercial do diário, há quem veja a narrativa pelo ponto de vista do lobo, outros, pelo dos porquinhos, e outros ainda (agora contém spoiler), culpam os bancos, que cobraram hipotecas exorbitantes para os porquinhos poderem ter suas casinhas. Nada mais ilustrativo do que estamos vendo nesse momento na chamada “guerra das narrativas”: uma miríade de histórias contadas sob a ótica de quem narra, disseminadas com uma velocidade absurda, confundindo e fazendo com que duvidemos até da nossa sanidade mental.

Pois é a confiança, que nos permite sobreviver às adversidades da vida sem dela desistir, o tema da 11ª Semana Global de Alfabetização em Mídia e Informação, liderada pela Unesco em cooperação com a Aliança de Alfabetização de Mídia e Informação da Unesco, da qual tenho o privilégio de fazer parte, e com a Rede de Universidades de Alfabetização de Mídia e Informação e Diálogo Intercultural da Unesco-UNAOC e outros parceiros. O tema desse ano é “Alimentando a confiança: um imperativo para a Alfabetização Midiática” e foca as diferentes maneiras pelas quais a educação midiática pode ajudar a combater a desconfiança que nos assola em todas as áreas da vida, minando as instituições e valores mais caros para a nossa sociedade, como a democracia, a ciência e a educação. “Há uma crescente desconexão entre as pessoas e as instituições que as atendem… Uma crise de confiança cada vez mais profunda fomentada por uma perda de verdade e compreensão compartilhadas”, afirmou o secretário-geral da ONU, António Guterres, quando falou sobre a agenda comum desse evento. A Unesco, por sua vez, reforça que o principal objetivo da alfabetização midiática celebrada nesta semana é ajudar a fortalecer “os valores de confiança e solidariedade como aglutinadores da coesão social”. Porém, enfatiza que “a dura realidade é que o fator confiança está sendo corroído”.

Parece óbvio que, para reconstruirmos a confiança básica, é preciso desvelar e desmascarar as realidades paralelas. Mas essa é uma tarefa das mais complexas

A confiança nas instituições que são os pilares da nossa sociedade não é mero palavrório, ela define a robustez das nações e fortalece seus cidadãos para lidarem com as intempéries de um mundo complexo como o nosso. Isso é o que comprova a Finlândia, país referência no combate à desinformação e às notícias falsas. De acordo com um relatório da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), 71% da população finlandesa confia no governo, em comparação com a média da instituição, que é de 41%. E essa confiança inclui também o Parlamento, o serviço público, a polícia e a mídia, que contam com excelentes níveis de confidência. Em um estudo anual do instituto Open Society, o país lidera um gráfico global que mede a resiliência à desinformação. Tal fato certamente se deve, entre outros fatores, ao investimento que o país faz em educação e mais especificamente em Educação Midiática, que é disciplina curricular no país desde a educação infantil e foi revista em 2016 na esteira dos episódios de disseminação de fake news na eleição americana, visando combater a desordem informacional com maior eficácia. Fora isso, o país também conta com uma agência pública de combate à desinformação, além de várias ONGs e instituições voluntárias que colaboram com esta causa. O serviço de verificação de fatos Faktabaari, por exemplo, é uma referência na área.

Há muitas teorias que explicam a corrosão da confiança que estamos experimentando. O ensaísta e professor titular de literatura comparada na Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) João Cezar de Castro Rocha afirma, em um artigo para o jornal Folha de S.Paulo, que estamos vivendo “uma espécie de delírio coletivo” , a dissonância cognitiva coletiva, “uma alucinação geral que despreza fatos e argumentos”, segundo a teoria do psicólogo social americano Leon Festinger. O professor sintetiza a dissonância cognitiva como sendo “um desconforto subjetivo causado pela consciência da distância entre crenças e comportamentos”. Para ele, esse fenômeno se amplifica nas mídias sociais, a quem chama de midiosfera extremista, “a mais poderosa máquina de desinformação da história da humanidade”. Essa teoria esclarece bem a sensação que muitos de nós temos quando conversamos com pessoas que enxergam uma realidade e determinados fatos que não possuem nenhum tipo de comprovação científica ou factual – a terra é plana! – de que, de fato, habitamos universos completamente distintos, ficando quase que impossível compreender as razões pelas quais essas pessoas permanecem defendendo tais crenças (“em que mundo essa pessoa vive?”, nos perguntamos, assombrados).

Diante de tal constatação, parece óbvio que, para reconstruirmos a confiança básica, é preciso desvelar e desmascarar as realidades paralelas. Uma tarefa das mais complexas, pois o ser humano se alimenta de histórias e por meio delas constrói seu presente e planeja o seu futuro. E as narrativas desconectadas da realidade se utilizam das mais sofisticadas técnicas de storytelling, criando representações que respondem com precisão às ideologias daqueles que as criam. De fato, é extremamente difícil competir com as distopias e teorias da conspiração, que são sempre eletrizantes e mobilizadoras dos nossos instintos mais primitivos. Como produzir o ceticismo necessário para desmistificar esses universos sem nos transformarmos em seres cínicos e irracionais?

Parece que o desencanto produzido pela sociedade capitalista que multiplicou as desigualdades e cerceou os sonhos e aspirações dos cidadãos comuns, encontrou sua mais completa tradução nos enredos descolados da concretude da história e, com isso, seguimos em estradas paralelas sem que consigamos nos encontrar. Talvez a saída seja propiciar meios tangíveis para imaginarmos outros mundos possíveis, mundos esses que possamos, com nossas mãos, efetivamente criar. Nesse sentido, vale lembrar que nós, brasileiros, estamos a poucos dias de uma das eleições mais cruciais da nossa história e que o voto de cada um de nós poderá criar a nossa realidade nos próximos anos. Nesse momento, mais do que nunca, precisamos (re)aprender a confiar, especialmente na nossa potência como cidadãos.

Januária Cristina Alvesé mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews - Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação - ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

Navegue por temas