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Vozes da Amazônia

O futuro do Brasil depende da Amazônia, mas de qual delas?

15 de novembro de 2022

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A região tem sido alvo de conteúdos falsos disseminados por figuras públicas da política local e federal, como mostra a pesquisa ‘Amazônia Livre de Fakes’

As eleições de 2022 acabaram, mas seus vestígios serão sentidos ainda por muitos anos. Um deles é a atuação das plataformas digitais em visibilizar perfis e páginas com alto nível de desinformação sobre a Amazônia. Foi o que comprovamos pela pesquisa “Amazônia Livre da Fakes” realizada entre março a setembro de 2022 a partir do Grupo de Trabalho do Projeto de Combate a Desinformação na Amazônia Legal e discurso de ódio na Amazônia Legal, uma iniciativa do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social com mais dez organizações, sendo oito delas amazônidas. O trabalho teve como objetivo mapear difusores e produtores de conteúdos enganosos e propor estratégias de enfrentamento. Foram levantados 70 perfis e páginas difusoras de desinformação, entre elas algumas com maior visibilidade e que se autodenominavam jornalísticas, que foram base para nossa investigação.

Percebemos que os sites foram criados para vender uma pauta única, hiperpartidária a favor do presidente Jair Bolsonaro, principal interlocutor de uma Amazônia inventada. Nas três páginas em que focamos nossa pesquisa identificamos que mais de 80% dos 206 conteúdos analisados são provenientes de releases de agências governamentais ou de outros veículos considerados também desinformativos. Os temas ambientais identificados nas publicações correspondem a menos de 10% do total de postagens diárias. E quando mencionadas são utilizadas como cortina de fumaça para esconder outros assuntos relevantes.

Muitas narrativas publicadas pelos perfis e canais do YouTube apresentam dados imprecisos ou descontextualizados de desmatamentos e conteúdo que nega as mudanças climáticas ocorridas nos últimos anos. Uma espécie de roteiros de filmes de ficção que são rapidamente viralizados pela facilitação das arquiteturas informacionais das plataformas. Impulsionados por uma profusão de cliques e remunerados pelas ferramentas de monetização.

Essas notícias não só chegam aos territórios amazônicos, mas circulam de forma ampla por grupos de mensagerias e por compartilhamentos de figuras influentes da política, como o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos -RJ), que coordenou a campanha do candidato à Presidência derrotado Jair Bolsonaro (PL). Cobrem todas as pautas do bolsonarismo, incluindo a descrença no sistema eleitoral e as distorções sobre a Amazônia.

Entre os vestígios das eleições está a atuação das plataformas digitais em visibilizar páginas com alto nível de desinformação sobre a Amazônia

Uma dessas plataformas que facilita a propagação da desinformação que citamos é o Youtube. Segundo suas regras, para ser remunerado com a ferramenta de monetização da plataforma, um canal precisa ter ao menos mil inscritos e acumular mais de quatro mil visualizações, além de não publicar conteúdos enganosos. A plataforma informa ainda que combate à desinformação e proíbe a monetização de conteúdo e anúncios que “contradizem o consenso científico sobre a existência e as causas das mudanças climáticas”. Mas nos parece que nos casos analisados pela pesquisa, essas regras não são válidas. Em vídeos que propagam narrativas falsas sobre queimadas e desmatamentos na Amazônia e discursos de ódio contra povos tradicionais, nenhum apresenta o chamado “ painel informativo com contexto do assunto ”, uma medida aplicada pela plataforma para “temas propensos à desinformação”.

É notório que a arquitetura informacional das plataformas potencializa modelos de negócios para si e para os proprietários das páginas sem serem claros sobre processos de remoção, banimento ou redução de alcance. Houve casos de banimentos por violação de termos de uso de algumas páginas difusoras durante a pesquisa, mas os critérios utilizados para justificar o banimento não são acessíveis. Ao mesmo tempo, há sites que seguem sendo indicados pela própria plataforma aos usuários. As medidas de combate às notícias falsas pelas plataformas não conseguiram conter a indústria da desinformação.

Na pesquisa ainda identificamos 18 figuras públicas de representação política dos estados da Amazônia Legal que propagam notícias falsas através de seus perfis nas plataformas digitais e com recorrência de violação de direitos. Alguns deles são parlamentares, alguns reeleitos nas eleições de 2022 e outros que tentaram pela primeira vez o pleito, o que nos chama o alerta para as eleições de 2024. Os políticos reeleitos atuam na contramão da pauta ambiental. Mais do que acompanhar o exercício dos representantes legislativos nos próximos anos, será necessário enfraquecer suas bases de atuação em uma possível tentativa de concorrer à vereança daqui a dois anos.

Todos os representantes políticos mapeados pela pesquisa são aliados a Jair Bolsonaro e apoiam a regulamentação de atividades econômicas em terras indígenas, a ampliação da posse de armas no campo, a dispensa do licenciamento ambiental para diversos empreendimentos, colaborando para a destruição da floresta amazônica e de suas populações.

Nas outras páginas difusoras da região da Amazônia foi percebida a influência dos parlamentares que manipulam as percepções sobre a agenda socioambiental para autopromoção de seus interesses econômicos ligados à tríade bala, agronegócio e mineração. Convertem espaços de visibilidade no meio digital com propaganda política e ideológica. Não resta qualquer dúvida que a bancada eleita de deputados pelo partido de Bolsonaro e sua coligação de direita devem impor enormes retrocessos na legislação brasileira de proteção do meio ambiente. Alguns temas que já se encontram na pauta de votação do atual Congresso – em especial a abertura das terras indígenas para a mineração – devem conseguir apoio para serem aprovados.

Portanto, há duas imagens do Brasil atrelado à Amazônia e ao futuro do país, resultantes de uma polarização política entre um autoritarismo e uma possibilidade de retorno à democracia. Uma com interesses ligados a grandes empresários, políticos, fazendeiros, grileiros e garimpeiros, além dos próprios criadores de conteúdo e plataformas, que representam a maior parcela dos beneficiados com narrativas enganosas. E outra que busca mais transparência nos dados do desmatamento e na conexão destes índices com o que o mundo está demandando sobre as mudanças climáticas.

Apesar de estarmos mais aliviadas com o resultado eleitoral, é preciso cobrar os responsáveis pelo cenário em que chegamos até aqui: as plataformas digitais precisam de uma vez por todas enfrentar a desinformação no Brasil e o poder público, em especial, o Parlamento, combater a atuação dessas figuras eleitas. Portanto, diante desse contexto, para defender a Amazônia – que reivindicamos a partir de nosso Grupo de Trabalho, a mãe do Brasil, a autonomia e proteção de seus muitos povos, do campo, da floresta e da cidade – será preciso mostrar com contranarrativas qual Amazônia queremos, pois a luta democrática, neste outubro histórico, deu possíveis sinais de ser retomada.

Viviane Tavares é jornalista e mestranda em comunicação pela UFRJ. Integra a secretaria-executiva do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e coordena o Projeto de Combate a Desinformação e Discurso de Ódio na Amazônia Legal.

Raquel Santos é jornalista e educadora popular, mestre em comunicação pela UFPB. É associada ao Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e pesquisadora do Projeto de Combate a Desinformação e Discurso de Ódio na Amazônia Legal.

Vozes da Amazôniaé uma coalizão formada por organizações, movimentos e coletivos socioambientais e culturais de dentro e fora da Amazônia brasileira. Surgida em julho de 2021, reúne visões, narrativas e territorialidades diversas, mas unidas com um único propósito: mobilizar e engajar toda a sociedade pela proteção da floresta, de seus povos e do equilíbrio climático do planeta.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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