Temas
Compartilhe
Depois de um mês de “férias”, esta coluna iniciaria 2022 com um texto sobre a vacinação infantil, uma vez que é negra a maioria das crianças que morrem de covid-19. No argumento do meu artigo, quase pronto e não publicado, eu defendia o seguinte: a ausência de uma legislação abertamente segregacionista, nas quais critérios de privilégio e exclusão racial estivessem explícitos nas leis, produziu em nós o sentimento de desamparo quando somos vítimas de políticas públicas racistas.
A forma como a política de vacinação infantil tem sido levada a cabo é um exemplo de como a política pública, de forma negativa, pode ter como alvo uma determinada parcela da população: sem estabelecer nenhum critério racial que selecione quais crianças serão ou não serão vacinadas, a política afasta, dificulta e sabota o acesso de crianças negras e indígenas ao imunizante. Portanto, embora estas últimas morram mais e a campanha de vacinação seja supostamente para todas as crianças, a população infantil negra, por uma série de fatores combinados, sendo a pobreza um deles, acaba sendo mais afetada pela covid. Contudo, ainda há quem vacile em reconhecer o caráter genocida da política de saúde durante a pandemia, justamente pela ausência de qualquer critério racial no programa de vacinação, que, em tese, é para todes.
Por uma ausência de critérios raciais explícitos na lei, e que tenham por objetivo excluir e não reparar ou sanar desigualdades, muitas pessoas me diriam que aqui não temos ideia de supremacia branca, tal qual existiu nos Estados Unidos e na África do Sul. Contudo, não seria possível esperar de realidades tão distintas as mesmas estratégias de implementação de um regime de desigualdade racial que estruturasse a sociedade. Recomendo o livro “Castas”, de Isabel Wilkerson, pois ao discutir sistemas de hierarquias e desigualdade na Alemanha, Índia e Estados Unidos, nos deixa com uma profunda sensação de familiaridade com os métodos, mas sobretudo com os efeitos das politicas de promoção de desigualdade racial no cotidiano das sociedades, tenham elas leis de apartheid ou não.
Assim, lanço uma provocação: será mesmo que o Brasil escapa dessa lista de nações estruturadas sob regimes supremacistas brancos? Vejamos.
Desisti de escrever sobre a vacinação infantil após o assassinato do congolês Moïse Mugenyi Kabagambe, de 24 anos, espancado e morto num quiosque na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Primeiro, protelei até quando pude ler a notícia, e até hoje não vi o vídeo que mostra seu espancamento… não assistirei. Entretanto, escutei relatos de dor de amigxs e colegas que assistiram ao vídeo. As pessoas me relataram o ódio dos agressores ao espancar a vítima. Li em jornais que um deles chegou a assumir o crime em vídeo e, de forma serena e natural, defende que, a despeito das torturas, não tinha intenção de matar Moïse e que não se arrependia do seu crime.
Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
Navegue por temas