Coluna

Januária Cristina Alves

Por uma internet que seja confiável para todos

02 de março de 2023

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Poucas coisas preocupam tanto a humanidade quanto o ambiente online. É necessário e urgente discutir o que pode e o que não pode acontecer lá

Era Carnaval e um grupo de mais de 1.500 pessoas ao vivo, e cerca de 4.000 de modo remoto, discutia, em Paris, os caminhos da internet. Poucas coisas preocupam tanto a humanidade como o ambiente online, que definitivamente passou a fazer parte da nossa vida física, facilitando o nosso cotidiano, mas também causando danos imensos a estruturas que são base para a nossa convivência, democracia e manutenção de direitos humanos. Portanto, mais do que nunca, é necessário e urgente discutir o que pode e o que não pode acontecer lá. Esta foi a razão de ser da conferência promovida pela Unesco intitulada “Internet for Trust: Towards Guidelines for Regulating Digital Platforms for Information as a Public Good” (“Internet Confiável: rumo à regulamentação das plataformas digitais para que a informação seja um bem público”, em tradução livre), que abordou como estabelecer e implementar processos regulatórios que preservem liberdade de expressão, acesso à informação e direitos humanos.

A “encrenca” é grande e definitivamente está longe de se resolver, como afirma Guilherme Canela, chefe de Liberdade de Expressão e Segurança dos Jornalistas na Unesco, presente no evento: “todos estão de acordo que temos um problema com o espaço digital, que tem uma série de conteúdos que podem gerar problemas para a democracia, para os direitos humanos. Mas não há acordo sobre como resolver este problema”, explica ele, ressaltando a importância de um movimento como este que se baseia em um documento público intitulado “ Guidelines for regulating digital platforms: A multistakeholder approach to safeguarding freedom of expression and access to information ” (“Diretrizes para regulamentar plataformas digitais: uma abordagem multissetorial para salvaguardar a liberdade de expressão e o acesso à informação”, em tradução livre). “Essas diretrizes tentam propor um mapa da mina sobre como resolver esse problema”, enfatiza.

O documento, que ainda é um “rascunho”, está aberto à contribuição de todos os atores envolvidos na cadeia de acesso à internet: governos, academia, especialistas no tema, empresas do ramo, influenciadores digitais, toda a sociedade civil, enfim. Essa consulta pública vai definir diretrizes para o enfrentamento das questões de liberdade de expressão versus regulação das plataformas, sobre o papel desempenhado por governos, sistemas regulatórios e empresas de tecnologia, para evitar danos à democracia e aos direitos humanos, de maneira a garantir um tratamento igualitário entre as diferentes regiões do mundo (sempre é bom lembrar que metade da humanidade NÃO está conectada ainda) e as diversas linguagens usadas na atividade de moderação de conteúdos e nos processos automatizados das empresas, os famosos bots.

Como não podia deixar de ser, o Brasil ocupou um papel importante nesse evento. O presidente Lula enviou uma carta que foi lida em inglês por João Brant, secretário de Políticas Digitais do governo na qual destacou que: “precisamos assegurar um direito coletivo: o direito de a sociedade receber informações confiáveis, e não a mentira e a desinformação”. O influenciador digital e fundador do Instituto Vero, Felipe Neto, que possui mais de 44 milhões de seguidores em suas redes sociais, também esteve representando o país, compartilhando com o público sua experiência especialmente durante as eleições presidenciais de 2022, quando combateu as fake news usando a linguagem do entretenimento para conquistar mais de 300 milhões de visualizações. Para ele, é fundamental que tenhamos diretrizes claras para o que acontece no universo online: “(ter uma) Constituição e códigos que criem as regulamentações para se conduzir essa vida digital é fundamental e isso vai garantir não só as responsabilidades e os crimes, mas também os nossos direitos”.

A questão que está posta não é mais se as plataformas serão reguladas ou não, mas como isso será feito de maneira a equilibrar liberdade de expressão com o respeito aos direitos humanos e aos valores democráticos. Equação nada fácil, como afirma categoricamente Felipe Neto, que acredita que esse é um problema sistêmico e que exige debate constante: “o que a gente precisa é de debate. Alguém em algum momento criou as regras que compõem hoje o Código Penal e, com certeza, teve alguém na época quando aquilo era elaborado que dizia: ‘quem vai dizer o que é crime e o que não é?’ Da mesma forma, nós temos agora que debater, conversar e através do diálogo, através da moderação, conseguiremos chegar a essas respostas”.

A questão não é mais se as plataformas serão reguladas ou não, mas como isso será feito de maneira a equilibrar liberdade de expressão e respeito aos direitos humanos e aos valores democráticos

Além da Unesco, outras instituições estão somando esforços para que essa regulação aconteça de maneira justa e democrática. Dois grandes atos regulatórios promovidos pela União Europeia estão em curso: o Digital Services Act e o Digital Markets Act, criados em 2020 com o objetivo de combater a desinformação na internet, promover a transparência na publicidade online e responsabilizar as empresas pelos conteúdos publicados pelos usuários. Nunca é demais lembrar que existe um oligopólio que garante a apenas cinco empresas americanas (Google, Amazon, Apple, Meta/Facebook e Microsoft) a exploração destas plataformas, o que, por si só, já configura uma imensa dificuldade para a sua regulação. E se isso não for argumento suficiente para dar conta da gravidade do tema, essa concentração também significa muito poder e informação para essas empresas, além de um risco para os usuários que “cedem” seus dados sem saber para qual finalidade serão usados. O modelo de negócio dessas plataformas está em xeque e por isso não será simples cooptá-las para essa normatização.

E para encerrar essa semana na qual a internet esteve no centro no mundo, aconteceu em Bruxelas o Fórum sobre Informação e Democracia, que é responsável pela implementação das diretrizes da Parceria Internacional para Informação e Democracia, assinada por 50 países em todo o mundo (o Brasil não é signatário). Eles publicaram um novo relatório com recomendações para Estados e plataformas de mídia social. O comitê diretivo do grupo de trabalho que elaborou o documento foi composto por pesquisadores, jornalistas e especialistas em tecnologia do mundo inteiro, dentre eles a jornalista brasileira Patrícia Campos Mello, autora do livro “A Máquina do ódio” (Companhia das Letras). “O alto nível de concentração no segmento de plataformas digitais aumenta os riscos ao acesso e troca de notícias e informações, já que o controle dos sistemas de recomendação tende a ser decidido por alguns atores empresariais influentes, que podem não ter interesse em buscar soluções que respeitem os objetivos democráticos”, declarou Pier Luigi Parcu, diretor do Centro para Liberdade de Mídia e Pluralismo do Instituto Universitário Europeu em Florença (Itália), presidente do grupo de trabalho.

Enquanto o mundo inteiro segue em busca de normas e procedimentos para estarmos na rede sem correr tantos riscos, nunca é demais lembrar o papel fundamental da Educação Midiática no enfrentamento desse problema. Conscientizar e esclarecer as crianças e jovens sobre o funcionamento dessas plataformas, sobre como elas são criadas para prender a nossa atenção, caçar nossos cliques, nos mantendo presos a conteúdos que não apenas nos distraem do que interessa, mas também nos inflamam com emoções nocivas e desinformação, é uma das saídas mais inteligentes e potentes de que dispomos. Ainda que o resultado seja a médio e longo prazo, vale a pena investir na formação de cidadãos críticos e competentes para sustentar esse debate, vigiar seus comportamentos virtuais e os conteúdos que acessam nas redes. Pois, como dizia o nosso grande educador Paulo Freire: “não basta saber ler mecanicamente que ‘Eva viu a uva’. É necessário compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir uvas e quem lucra com esse trabalho”. Por isso vale lembrar que a educação será sempre parte da solução de qualquer problema.

Januária Cristina Alvesé mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews - Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação - ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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