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Eu tinha 9 anos e estava lendo as obras de Monteiro Lobato da biblioteca da escola. Nessa época, apaixonei-me pelo universo lobatiano: não imaginava mais a minha vida sem a Emília, o Visconde de Sabugosa e todos os outros habitantes do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Mas como eu morava numa cidade pequena, no interior de Pernambuco, nem sempre era fácil obter todos os livros e como faltavam poucos do Lobato para eu ler a coleção inteira, não consegui esperar que a bibliotecária comprasse o livro que eu queria. Resolvi pedir emprestado à minha vizinha um dos que estava mais ansiosa para ler: “O minotauro”.
Lembro-me bem do livro: encadernado, capa dura marrom, quase novo. Não me contive e parei ali mesmo, na calçada da casa dela, para abri-lo.
Tudo começava com a turma do Sítio dando-se conta de que Tia Nastácia fora “esquecida” na história do casamento do Príncipe Codadad com a Branca de Neve, em que os monstros das fábulas invadiram a história! Foi cada um por si e quando viram, já de volta ao Sítio, cadê Tia Nastácia? O jeito foi realizar uma expedição para resgatar a cozinheira! E lá foram eles para a Grécia: “… a Grécia antiga, também chamada Hélade, que é a Grécia povoada de deuses e semideuses, de ninfas e heróis, (…) monstros tremendos como a Esfinge, a Quimera, a Hidra, o Minotauro…”
Nem fui para casa. Sentei-me na calçada, e embarquei naquela viagem. Lembro-me vagamente de minha mãe me chamar algumas vezes: “venha lanchar, menina! Venha tomar banho! Olha, vai escurecer!…”
Escureceu. E só por isso voltei para casa. Mas não consegui parar de pensar naqueles personagens que me arrebataram. Num tempo recorde tomei banho, jantei e me enfiei na cama com aqueles deuses e heróis… Adormeci com o ponto final da história, que trouxe todo mundo de volta ao Sítio.
Mas, de alguma maneira, parece que ainda estou lá: nunca mais consegui me desvincular da mitologia grega. Descobrir aquele universo marcou a minha vida para sempre. Por meio da mitologia entrei em contato com as grandes verdades universais, o que me ajudou a entender um pouco mais quem sou eu, ou quem somos nós. Por meio de Monteiro Lobato descobri o folclore brasileiro, uma das grandes paixões da minha vida. O labirinto do Minotauro, definitivamente, para mim, é um lugar de onde eu nunca consegui – e nem quis – sair…
Me lembrei dessa história ao ver, nas mídias e redes sociais, um episódio que rendeu discussões acaloradas recentemente: Roald Dahl, autor britânico falecido em 1990, autor de clássicos da literatura universal como “A fantástica fábrica de chocolate” e “Matilda” (ambos transformados em filmes de sucesso para o cinema), dentre outros, teve sua obra alterada “para eliminar termos considerados ofensivos”, tais como “gordo” e “feio” (sic!). Um anúncio da editora Puffin Books, braço da gigante global Penguin Random House, que publica os livros do autor, explicou que decidiram editar, suprimir e mudar trechos que possam ser considerados ofensivos atualmente em todas as suas obras. “Palavras importam”, justificaram. “Este livro foi escrito há muitos anos e, portanto, revisamos o idioma para garantir que ele continue sendo apreciado por todos hoje.” Jura? Talvez eles devessem checar essa percepção, pois os livros continuam vendendo bem, e gerações inteiras sempre souberam lidar com as tais “falas ofensivas” ou politicamente incorretas. Tenho sérias dúvidas de que a leitura dos livros de Dahl tenha gerado comportamentos abusivos, violentos e/ou destrutivos, como temos visto muitos textos postados nas mídias sociais causarem em crianças e jovens do mundo inteiro.
Nunca vivemos tantas possibilidades de liberdade de expressão ao mesmo tempo em que assistimos a tantos episódios de censura
Vivemos um paradoxo e estamos num labirinto, tal como o Minotauro. Nunca vivemos tantas possibilidades de liberdade de expressão ao mesmo tempo em que assistimos a tantos episódios de censura. Autores responsáveis pela formação de crianças e jovens durante gerações são cancelados e têm seu “lugar de fala” questionado. Não pode falar sobre o que é feio, desconfortável, preconceituoso, mau, difícil. Um branco não pode escrever sobre ser preto, um homem não pode exercer sua experiência imaginativa descrevendo como se sente uma mulher (imaginem se Chico Buarque de Hollanda tivesse sido proibido de escrever sobre isso!). As crianças e jovens “não compreendem” ou são, por meio dessas leituras, estimulados a reproduzir comportamentos abusivos. Será? Reduzimos a literatura a um politicamente correto que rouba de nós e dos jovens leitores a condição de lidar com as desigualdades, as diferenças, com as dificuldades que a vida nos apresenta. A literatura é a possibilidade mais eficiente e arrebatadora de provocar a empatia, de nos fazer “estar na pele” alheia e, ao compreendermos a dor do outro, temos condições de lidar de maneira mais criativa e saudável com a nossa.
“Um texto literário, como uma canção, uma história em quadrinhos, um romance, pode ser abrigo para outras experiências, que expandem nossas próprias vidas, para outros modos de desafiar o mundo ou de se submeter a suas regras. Pode ser um espaço onde diferentes gerações se encontrem, ainda que discordando de ações e gestos. Pode ser, também, um lugar de compartilhamento de alegrias e dores, de afetos. (…) Para compreender e pensar, não necessariamente para julgar e condenar. (…) Por isso, o veto a uma obra literária será sempre um estreitamento dos possíveis, o roubo de um pouco de nossa humanidade”, escreveu a professora de literatura brasileira da Universidade de Brasília, Regina Dalcastagnè, em um artigo na Folha de S.Paulo. “Em vez de ajudarmos jovens e crianças a enfrentar microagressões cotidianas que sempre existirão, dado que o homo sapiens é uma espécie gregária e competitiva, queremos enclausurá-los em um mundo cor-de-rosa de empatia. Resultado? Adultos imaturos e sem autonomia”, disparou Lygia Maria, em sua coluna também publicada na Folha de S.Paulo, comentando o episódio Roald Dahl.
Estamos num momento extremamente delicado da história da humanidade. É preciso identificar muito bem os limites e possibilidades da liberdade de expressão, conceito cuja única unanimidade é de que trata-se de um direito fundamental do ser humano. É preciso discriminar do que precisamos proteger nossas crianças e jovens. E o que necessitamos lhes ensinar, dado que nos dias de hoje trafegam com facilidade e “fluidez” pelos mundos on e offline. Acredito que uma das principais ferramentas para lidarmos com tantas desconexões é o diálogo, a construção de um “chão comum” sobre o qual possamos conversar a respeito de tudo o que nos acontece. Silenciar e eliminar os conflitos entrando num mundo paralelo produz seres que são alvos fáceis para as teorias conspiratórias, como temos visto e constatado onde elas podem nos levar. Faço minhas as palavras da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, em uma recente entrevista à revista Quatro Cinco Um: “não vamos banir, vamos responder. Nesta era de desinformação crescente no mundo todo, na qual é fácil enfeitar tão bem uma mentira que ela adquire o brilho da verdade, a solução não é esconder a mentira, mas expô-la, e tirar dela esse brilho falso. Quando censuramos os vendedores de ideias más, corremos o risco de transformá-los em mártires, e a batalha contra um mártir jamais poderá ser vencida”.
Se desejamos criar adultos maduros e capazes de suportar a dúvida – porque só ela promove o conhecimento – precisamos conquistar o nosso lugar de fala e exercer a nossa liberdade de expressão pelo exercício diário do respeito ao diferente, diverso e desigual, pelo diálogo, pela ética e pela compaixão.
Januária Cristina Alvesé mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews - Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação - ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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