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Devemos ter cuidado: a Bahia segue em caça à população negra. Os assassinos não respeitam idade nem lugar. Não há diferença se é Gabriel sentado na soleira da porta de casa aos 10 anos, se são rapazes cujas vidas pudessem ser resgatadas por uma verdadeira política de ressocialização e pelo devido processo legal, ou se é a imensurável perda que acabamos de ter na noite de quinta-feira, a da Yalorixá e liderança quilombola Bernadete Pacífico.
Yá Bernadete, nossa mais nova ancestral, foi assassinada em casa, sentada no sofá. Estava dentro da sua residência, seu terreiro, seu quilombo. O que revela que não tem limites a covardia, o racismo religioso e o acinte violento de quem viola o mais sagrado espaço de alguém para tirar sua vida. Essa audácia de quem invade a casa de uma liderança religiosa, política e comunitária, não é um ato de loucura. Assim como aconteceu nos assassinatos de Marielle Franco, Chico Mendes, Dom Philips, Bruno Pereira e de mais todas as crianças, travestis, homens e mulheres negras, quem comete o crime conta com a certeza da impunidade.
Por meio da imprensa e dos filhos e filhas de Yá Bernardete, saberemos ao longo dos dias mais detalhes sobre quem foi a vítima e qual foi sua importância na luta pela vida de todo um país. Saberemos da sua dor de ter perdido um filho, e da quase inevitabilidade da sua resistência como líder de uma comunidade ancestral e religiosa. Contudo, pouco saberemos, talvez, sobre os criminosos e dos crimes daqueles que tiraram sua vida e do seu filho.
É por isso que, desde 2017, quando alguém que se tornou presidente da República disse que quilombolas “pesam arrobas” e que nenhum direito a terra lhes seria concedido, movimentos sociais e membros da sociedade civil vêm alertado para o processo de desumanização de pessoas negras e indígenas, para a violência no campo e nos territórios tradicionais comunitários. Aquela fala nefasta serviu como uma perversa promessa dos dias que se seguiriam: estava ali anunciado um retrocesso do ponto de vista dos direitos dessas comunidades e uma temporada de caça, ou de vale tudo, contra os povos quilombolas cujas terras estariam em disputa. Falas genocidas legitimam a violência e incentivam o crime.
Nas horas que se seguirem ao crime, serão diversas as moções de repúdio, as cartas de apoio e de solidariedade, os textos (como este), e as promessas de apuração vindas do Estado. Colecionamos manifestações como essas: só neste mês de agosto, acumulamos várias. Elas não são suficientes para impedir a máquina de moer gente que todos os dias nos lembram que o genocídio vai acontecer em algum momento.
A Yalorixá e as nossas lideranças que denunciam o racismo e a opressão são muito importantes. E é justamente por isso que suas vidas estão vulneráveis. Precisamos cuidar deles e delas, sob o risco de todas nós nos enfraquecermos
O governo da Bahia silenciou até ser cobrado pelo Ministério dos Direitos Humanos. E não basta tuitar, governador: é preciso que as lideranças negras, indígenas e quilombolas sejam ouvidas aqui, no seu território, no seu chão. Somente elas sabem, de todo, das ameaças que sofrem e como protege-las afetivamente.
No mais, antes de ir e ficar em silêncio, que é o que fazemos nas religiões tradicionais quando perdemos ancestrais e lideranças, convido-nos a pensar sobre o impacto de mais esta perda trágica, cruel e dolorosa que o Brasil e sua comunidade negra sofreram. Segundo a intelectual Leda Maria Martins, a memória do povo negro está na sua escrita e oralidade, mas sobretudo está no seu corpo. O saber ancestral, as tradições e os saberes são os verdadeiros valores e riquezas dessa comunidade, que por meio de muitas estratégias manteve seus corpos vivos e suas tradições resistentes (e renovadas). Corpos e vozes de lideranças como Yá Bernadete representam a própria história e dinâmica de um povo inteiro em transformação e ancestralidade.
Uma perda para uma comunidade inteira, para a Bahia, mas sobretudo para as pessoas do axé de Yá Bernadete, que agora sofrem sem que possamos ver, do portão do terreiro para dentro, a mãe, a fortaleza de cada um que se vai. A cumeeira (ou cumieira, como falamos na Bahia) é a parte mais importante da estrutura física de uma casa, principalmente de uma casa de axé. É ela que sustenta todas as outras estruturas, até aquelas aparentemente independentes, mas cujas forças se nutrem da cumeeira, o centro. Seu vigor e energia inspiram tudo ao redor, para que tudo se mantenha de pé.
Tudo seguirá adiante, e para muitas pessoas a vida até que seguirá normal. Mas somente quem está no Ilê de Mãe Bernadete sabe quanto tempo se leva para se erguer uma cumeeira nova. A perda é imensa. A Yalorixá e as nossas lideranças que denunciam o racismo e a opressão são muito importantes. E é justamente por isso que suas vidas estão vulneráveis. Precisamos cuidar deles e delas, sob o risco de todas nós nos enfraquecermos, os mais velhos e os mais novos.
A Bahia tem a maior população quilombola do Brasil. A Bahia tem a segunda maior população indígena do Brasil. A Bahia tem a maior população negra do Brasil. O Brasil, na sua face mais diversa e ancestral, encontra-se na Bahia, onde esse projeto colonizador genocida começou. Aqui também essas vidas resistem, permanecem vivas e precisam de justiça e proteção.
Portanto, atenção: hoje não está tudo certo na Bahia. Por isso não há como estar tudo certo no Brasil.
Minha profunda solidariedade à família de mãe Bernadete.
Minha profunda solidariedade e respeito às suas filhas e filhos do seu Ilê axé.
Meu pesar à Conaq.
Oxalá que nos conforte nesta sexta-feira, axé.
Agradeço a Mirtes Santa Rosa, parceira que amparou (e melhorou) essa escrita dolorosa.
Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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