Coluna
Januária Cristina Alves
Somos seres que leem, escrevem e contam histórias
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Na mesma semana em que os dados do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa) 2022 foram divulgados, constatando que em leitura 50% dos adolescentes brasileiros de 15 anos ficaram até o nível 2 – no qual eles conseguem apenas identificar a ideia principal em um texto de tamanho moderado e refletir sobre o propósito de informações explícitas –, o prêmio Jabuti de melhor livro infantil foi para “Doçura”. Uma obra de Emília Nuñez e Anna Cunha (Editora Tibi), que celebra a importância da leitura para a formação de crianças e jovens.
“Ler para uma criança é dar início a uma doce revolução pelo afeto”, diz a frase que está na quarta capa da obra, um livro-imagem definido por Nuñez como “uma celebração às professoras e às mães que leem com suas crianças”. A triste constatação de que 50% dos nossos jovens de 15 anos não consegue refletir sobre um texto ou um pequeno conjunto de textos, nem comparar e contrastar os pontos de vista de vários autores com base em informações explícitas, diz muito sobre as dificuldades de leitura e escrita das crianças e jovens de um país que relegou a educação – e em especial leitura literária – ao segundo plano. Mas, ao mesmo tempo, assistir ao maior prêmio de literatura brasileira sendo ofertado a um livro que confirma a leitura como ferramenta para entender o mundo em que vivemos e superar, nas linhas e entrelinhas, as vicissitudes de uma vida marcada por desigualdades, faltas, lacunas – e também, vale lembrar -, oportunidades, nos oferece um sopro de esperança. Somos um país de idiossincrasias.
Apenas 16% da população brasileira é consumidora de livros, aponta uma nova pesquisa da Câmara Brasileira do Livro realizada pela Nielsen BookData, que ouviu 16 mil pessoas com 18 anos ou mais. Mas, dentre os que não consomem livros, – 84% da população entrevistada – 85% entende que ler é algo relevante e justifica que não o fazem por causa do alto preço dos livros. Ler é importante, escrever bem é a chave para conquistar boas colocações profissionais, dentre outros privilégios, e, sobretudo, ler e escrever é um direito de todos, pois é por meio da leitura e da escrita que nos tornamos cidadãos, nos constituímos como sociedade, que criamos cultura. E nem precisamos de números para confirmar essas premissas, elas estão na “boca do povo”, são dessas verdades que ninguém ousa contestar. Mas por que, se somos seres que ouvem, contam e escrevem histórias, estamos com tantas dificuldades para tornar isso uma prática comum a todos?
Listar as razões pelas quais isso ocorre ocuparia muitas páginas do Nexo. Elas são tantas e tão complexas quanto as causas do fosso da desigualdade na qual estamos mergulhados. No entanto, eu gostaria de chamar atenção para uma delas, que me parece tão fundamental quanto todas as outras: precisamos nos reconhecer como autores, contadores, narradores de histórias. E como tais, precisamos ler, ouvir, contemplar as narrativas dos que vieram antes de nós, os clássicos, oráculos da humanidade, as histórias de tradição oral, as poesias, as crônicas, as notícias dos jornais. Precisamos encontrar razões para gostar de ler. Compreender que é somente lendo que podemos conhecer os valores mais profundos e que são atemporais: o amor, a amizade, o medo, o poder, a perda, os rituais de passagem, a saudade, a tristeza, a morte e a alegria. Como está escrito no texto de apresentação Bibliografia Brasileira de Literatura Infantil e Juvenil, produzida pela Rede de Bibliotecas Infanto-Juvenis do Município de São Paulo nos anos 90: “A criança cresce, torna-se adulta, mas as questões existenciais continuam as mesmas da infância: Quem sou eu? Quem é o outro? O que sinto? O que quero? Para onde vou? O que é a vida? A literatura responde a estas perguntas? Não. A literatura dá um sentido para vida? Também não. Mas… então, por que ler? E uma menina de 10 anos responde: ‘– Porque nas histórias acontecem coisas pra fora e coisas pra dentro.’ ” Quando entendemos que temos necessidade de experienciar “coisas de fora e de dentro” para crescer e amadurecer, não há celular que nos distraia (só para lembrar que o Pisa aponta o uso do celular como uma das principais distrações das crianças, razão pela qual não conseguem se concentrar nas aulas de matemática, por exemplo).
A curto, médio e longo prazo, há algo que cada um de nós pode fazer, no seu canto: ler para uma criança, comentar sobre um livro que nos encantou com um jovem, pedir que eles nos contem e também escrevam ou desenhem uma história
Do outro lado da moeda, temos a escrita. Se somos contadores de histórias, há em nós o desejo intrínseco de registrá-las, de guardá-las num repositório para que não morram e sigam propagando o que julgamos fundamental na vida para aqueles que as lerem. Segundo o escritor Ítalo Calvino “sempre escrevemos sobre algo que não conhecemos, escrevemos para dar ao mundo não-escrito uma oportunidade de expressar-se através de nós”. A nossa escrita é absolutamente necessária para a formação cultural de toda a humanidade, e, no entanto, achamos que só os escritores renomados têm essa função. “Ter a nossa história espelhada na história de pessoas que viveram antes de nós pode nos ajudar a suportar a dor de viver”, afirma a psicanalista Maria Homem em sua coluna da Gama Revista. “Esse é o poder da cultura: não nos deixar enlouquecer. Nos ajudar a segurar mais um pouco. Encontrar alguém que parece que nos escuta, ou que está falando com a gente”, complementa.
Essa foi a ideia de Luana Lira, líder do coletivo Nós, Marias, que faz parte da rede Girl up da Organização da Nações Unidas (ONU), que reuniu, num livro de contos, histórias de violência, abandono, bullying e tantas outras coisas, relatadas por jovens brasileiras de 25 estados. “Meninas que escrevem”, editado pela Jandaíra, é um livro e uma evidência de que, quando acreditamos que escrever importa e, sobretudo, que pode mudar o mundo, essa prática se concretiza. Como afirma Letícia Bahia, coordenadora nacional do Girl Up Brasil, na orelha do livro: “Elas são muito maiores do que o título deste livro. Elas escrevem, mas vão muito além disso: conectam, inspiram, aprendem, ensinam, realizam. (…) Elas são o futuro e o presente, essas a quem chamamos de ‘meninas que escrevem’”.
Obras como essa, totalmente criada e produzida pelas meninas do Brasil de norte a sul, ou como o premiado “Doçura”, nos lembram que, se os problemas de leitura e escrita das crianças e jovens brasileiros são difíceis de solucionar e requerem um esforço concentrado de toda a sociedade, a curto, médio e longo prazo, há algo que cada um de nós pode fazer, no seu canto: ler para uma criança, comentar sobre um livro que nos encantou com um jovem, pedir que eles nos contem e também escrevam ou desenhem uma história.
“A leitura do mundo precede a leitura da palavra”, dizia o mestre Paulo Freire, e sabemos que ela acontece nos encontros que as histórias promovem. É no laço com o outro que damos conta de entender e suportar a dor e a morte, e de celebrar a alegria de viver. Como diz outro grande escritor, Eduardo Galeano: “os cientistas dizem que somos feitos de átomos, mas um passarinho me diz que somos feitos de histórias”. E sobre isso não há mais nada a declarar.
Januária Cristina Alvesé mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews - Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação - ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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