Coluna

Januária Cristina Alves

Todos juntos por uma internet mais positiva e segura

15 de fevereiro de 2024

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Melhorar o ambiente digital tem a ver com o estabelecimento de relações verdadeiras e confiáveis entre crianças e adolescentes e seus responsáveis

O grande escritor e semiólogo Umberto Eco gostava de comparar a internet a uma grande floresta, na qual é possível se perder ou andar em círculos, num labirinto que não leva a lugar nenhum. Aprecio essa metáfora, e ela é sempre um bom começo de conversa quando falo sobre as redes com crianças pequenas: costumo citar a história de João e Maria, que só não se perderam na floresta porque João teve a ideia de marcar o caminho percorrido com pedrinhas. Se isso não os salvou da bruxa má, que por pouco não colocou os dois irmãos no caldeirão dado que eles se deixaram encantar pela casa coberta de doces, deu-lhes uma saída possível, mostrando que, quando planejamos o nosso percurso e tomamos alguns cuidados importantes, conseguimos não só atravessar a floresta, mas escapar de seus perigos.

Se nos anos 1990, quando Eco traçou esse paralelo, a rede mundial de computadores já era tão atraente quanto perigosa, o que dizer da internet que temos hoje, acrescida de centenas de mídias sociais e turbinada pelo uso da inteligência artificial? Pois é, o desafio dobrou, triplicou, e a pergunta-chave, cuja resposta vale um milhão de dólares e muito provavelmente determinará o destino final da humanidade, é: como preparar crianças e jovens para um uso seguro, responsável, ético e positivo das tecnologias? Como educá-los para que possam conviver de maneira saudável nos ambientes digitais?

Propiciar uma experiência segura na internet envolve mais do que passar um conjunto de procedimentos e dicas para nossas crianças e adolescentes

Sob o tema “Unidos para uma internet mais positiva”, celebrou-se o Dia da Internet Segura, evento que acontece em mais de 200 nações, e está em sua 21ª edição global e na 16ª no Brasil. Ele tem como objetivo mobilizar atores públicos e privados na promoção de ações de conscientização sobre o uso seguro, ético e responsável das tecnologias da informação e comunicação. 

“A complexidade do cenário digital exige uma abordagem multissetorial orientada à construção de consensos mínimos entre governos, sociedade civil organizada, setor privado e todos os demais usuários da rede para enfrentar os desafios trazidos pelo uso indevido da inteligência artificial, pela desinformação, além, é claro, daqueles que usam a internet para crimes de ódio e abuso e exploração sexual infantil”, afirma Thiago Tavares, presidente da SaferNet Brasil, uma das organizações envolvidas no evento. Proteção à infância num contexto de ascensão da inteligência artificial generativa, uso excessivo de telas, integridade da informação e enfrentamento à violência sexual online contra crianças e adolescentes foram alguns dos temas discutidos por especialistas brasileiros e estrangeiros que, em dois dias de debates, buscaram estratégias conjuntas para minimizar os efeitos do uso inadequado e abusivo da internet por crianças e adolescentes.

“Quando minha filha completou 12 anos, percebi que, juridicamente, ela entrou numa fase em que já é responsável por suas ações, mas não tinha a mínima noção disso. Vejo jovens que fazem mau uso da internet, praticando infrações online, sofrem consequências e não sabiam das causas e efeitos de suas ações. Por isso, resolvi escrever o livro, para ajudar a explicar não só para minha filha sobre direitos, deveres e consequências no uso da internet, mas para todos os jovens”, relata a advogada Kelli Angelini, autora de “Segredos da internet que crianças e adolescentes ainda não sabem” (ed. In Verso), destinado a pais, educadores e também aos adolescentes. Na obra, a advogada elenca mais de 40 histórias reais de bons e maus usos da internet por crianças e adolescentes. O livro evidencia, de maneira clara e didática, que somente munindo esse público de informações sobre como funciona o universo digital podemos, de fato, empoderá-los para saberem trafegar nessa floresta cada dia mais densa.

“O universo digital tem como uma de suas enormes riquezas facilitar o acesso à informação e ao conhecimento, e promover a interação com outras pessoas. (…) Daí a importância de realmente nos dedicarmos a compreender que o uso das novas tecnologias deve ser norteado por valores éticos e transmitir isso para nossos filhos. Nossa missão como pais, mães e cuidadores é formar cidadãos digitalmente responsáveis”, afirma a também advogada e autora do livro “Crianças e adolescentes no mundo digital: orientações essenciais para o uso seguro e consciente das novas tecnologias” (ed. Autêntica), Alessandra Borelli. Em seu livro, Borelli frisa a importância de todos nós, cidadãos educadores dessa nova geração, guiarmos aqueles que, apesar de já terem nascido imersos nesse universo, seguem como presas fáceis para todos os tipos de perigos ali existentes.

É fundamental ressaltar que propiciar uma experiência segura na internet envolve mais do que passar um conjunto de procedimentos e dicas para nossas crianças e adolescentes. Informação sem significado é uma semente destinada a não frutificar. A internet é o espelho do mundo em que vivemos, e se pais, cuidadores e educadores não se convencerem de que é preciso adentrar o quarto dessa turma para saber o que acontece lá, que tipo de vivências experimentam, o que conversam, não haverá instruções capazes de evitar que esses seres em formação caiam no golpe dos abusadores sexuais, pratiquem cyberbullying, profiram discursos de ódio e repliquem preconceitos de toda ordem. É claro que o quarto aqui é uma metáfora para falar sobre a intimidade desse público, que, como mostram as pesquisas, confia mais no influencer predileto do que nos pais ou professores. É preciso fortalecer os vínculos com eles para que essa porta do quarto se abra com confiança e disponibilidade, e para que, unidos, possamos desbravar essa floresta digital. 

Aliás, é importante citar que “geração do quarto” foi o termo que o professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco Hugo Monteiro Ferreira, autor do livro “A geração do quarto: quando as crianças e adolescentes nos ensinam a amar” (ed. Record), encontrou para definir jovens na faixa etária de 11 a 18 anos de idade que passam cerca de seis horas por dia dentro de seus quartos, conectados ao universo online, e que, por conta disso, enfrentam problemas de convivência em sociedade. Em sua pesquisa, ele descobriu que esse público geralmente pertence a uma classe social mais favorecida e acaba se tornando vítima de diversos tipos de violência, como o bullying e o cyberbullying, além de outras formas de sofrimento, que se expressam por meio de transtornos alimentares, ansiedade, depressão e até mesmo suicídio.

Na orelha do livro, Carlos Henrique Aragão Neto, psicólogo, mestre em antropologia e doutor em psicologia e cultura, comenta a importância dessa obra: “Após ter ouvido, por meio de questionários, entrevistas e grupos de discussão, cerca de 3.115 pessoas entre 11 e 18 anos de idade de cinco capitais brasileiras, Hugo Monteiro Ferreira mostra como a condição socioemocional de crianças e adolescentes é tema dos mais urgentes, merecendo total atenção. A geração do quarto, matéria-prima dos estudos e das pesquisas de Hugo, mantém-se ‘isolada’ em seus claustros domiciliares, fazendo uso excessivo da tecnologia, dormindo mal, sem a prática regular de esportes, com sérios comprometimentos na socialização e na linguagem, por vezes apartada do contato com a natureza”.

Criar um ambiente digital mais positivo tem a ver com o estabelecimento de relações verdadeiras e confiáveis entre crianças e adolescentes e seus responsáveis. Tanto no mundo on quanto no offline, o que precisamos é fazer parte, ser parte e tomar parte de uma comunidade cujo objetivo é aprender e ensinar a conviver em harmonia. A informação é a base, mas o que sedimenta são os vínculos de verdade.

Januária Cristina Alvesé mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews - Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação - ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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