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O mês de março assistiu à reemergência da controvérsia em torno das comissões de heteroclassificação racial. O motivo foi o cancelamento da matrícula no curso de medicina da USP (Universidade de São Paulo) de Alison dos Santos Rodrigues, candidato autodeclarado pardo e classificado dentro das cotas raciais recém-adotadas pela universidade, porém, impugnado pela comissão de heteroclassificação racial da instituição. O caso de Rodrigues não foi o único de 2024. As matrículas de Caique Passos Fonseca e Glauco Dalalio do Livramento também foram vetadas pela comissão da universidade, mas os casos foram revertidos por decisões judiciais.
Infelizmente, esses não são os primeiros casos do tipo. Pioneira na criação dessas comissões, a UnB (Universidade de Brasília) estampou a capa dos jornais em 2007 por ter recusado a inscrição como cotista de Alex Teixeira da Cunha, mas aceito a de Alan Teixeira da Cunha, seu irmão gêmeo e idêntico. Motivo de discórdia dentro e fora dos movimentos pró-ação afirmativa, as comissões de heteroclassificação racial suscitam polêmica desde que começaram a ser adotadas.
Há razões legítimas para tal. Se raça é um conceito sem fundamento na biologia humana, pode soar contraditória uma política pública que dependa da identificação da raça das pessoas para funcionar. Ademais, comitês e processos de identificação racial foram historicamente empregados em contextos racistas, como durante o nazismo na Alemanha, as leis Jim Crow nos Estados Umidos e o regime do apartheid na África do Sul, todos momentos em que se cometeram os maiores crimes coletivos e sistemáticos contra a humanidade.
Nesses casos, contudo, os mecanismos de “identificação racial” se baseavam em teorias pseudocientíficas que atribuíam a determinados grupos não apenas uma inferioridade natural, mas também os consideravam fonte constante de risco social. Logo, são falsas as analogias entre as comissões de heteroclassificação brasileiras e essas experiências próprias de regimes racistas. Primeiro, porque a identificação racial nesses países visava segregar e oprimir grupos racializados, enquanto as ações afirmativas no Brasil objetivam o oposto: incluir e promover a ascensão social de pretos, pardos e indígenas. Segundo, porque o fundamento jurídico dessas comissões parte de uma definição sociológica, e não biológica, de raça. Para mencionar uma expressão já clichê, elas tomam a raça como uma construção social e não como um fato natural.
As comissões de heteroclassificação racial brasileiras só podem ser plenamente entendidas se compreendermos as implicações teóricas e práticas da ideia de que raça é uma construção social. Não há até hoje nenhum traço genético nem marca fenotípica que permita agrupar pessoas em raças distintas de modo objetivo. Na biologia, o próprio conceito de raça tem uma definição antinômica e etérea. Disso não resulta, contudo, que os séculos de racismo pseudocientífico tenham sido milagrosamente apagados da subjetividade humana e do modo como ela hierarquiza as pessoas conforme seus traços físicos. Com bases em elementos arbitrários que vão da cor da pele e da textura do cabelo até o formato da boca e do nariz, continuamos dividindo e eventualmente discriminando uns aos outros.
Luiz Augusto Camposé professor de sociologia e ciência política no IESP-UERJ (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro), onde coordena o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa, o GEMAA. É autor e coautor de vários artigos e livros sobre a relação entre democracia e as desigualdades raciais e de gênero, dentre os quais “Raça e eleições no Brasil” e “Ação afirmativa: conceito, debates e história”.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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