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A essa altura já é notícia velha, então não preciso contar como o X, vulgo Twitter, acabou bloqueado no Brasil por conta da rusga entre Alexandre de Moraes e Elon Musk. Depois de Musk se recusar a cumprir ordens judiciais de suspensão de contas e anunciar a retirada do escritório do X no Brasil alegando insegurança judicial de sua equipe, o ministro do STF deu ordens para que a rede social fosse retirada do ar pelos provedores de internet brasileiros em 30 de agosto. Para além da proibição, Moraes ainda estabeleceu uma multa de 50 mil reais para quem acessasse a rede por VPNs (redes privadas virtuais), e chegou a ordenar a retirada de VPNs de lojas de aplicativos, antes de reverter sua própria decisão em questão de horas.
Não pretendo aqui fazer uma análise jurídica da conduta de Moraes, que já foi analisada por gente mais qualificada do que eu. Mas ao meu olhar de leigo, para além da falta de transparência no bloqueio de contas (realizadas sob a alçada do interminável inquérito das fake news) e do excesso de rigor em censurar perfis ao invés de excluir conteúdos específicos, despachar numa sexta de noite para se desdizer em questão de horas parece um comportamento de juiz de primeira instância amalucado. Como se diz no futebol, juiz que aparece já é um problema. E como nos ensinam as capas de revista com Sergio Moro e Lula no ringue – bem como o desenrolar da história – um juiz que entra na luta deixa a luta sem juiz, e isso acaba fazendo falta.
Quando o resultado das eleições não nos agrada, é sempre mais fácil botar a culpa num grande vilão no que conceder que o eleitorado pensa diferente de nós
Mas isso tudo já foi dito, e está longe da minha área de expertise. E se escolhi escrever sobre o tema, é para refletir sobre a reação pública à polêmica – o que cai mais dentro da minha alçada. Pelo menos nas minhas redes pessoais, que podem ser descritas, grosso modo, como uma bolha acadêmica de esquerda, a resposta à conduta de Moraes parece amplamente positiva – quando não entusiástica –, o que me parece curioso. A esquerda brasileira, afinal, passou décadas definindo sua identidade a partir da resistência contra a ditadura, e qualquer ameaça de banco cancelar exposição era respondida até uns anos atrás com palavras de ordem do tipo “censura nunca mais”. Mas nos últimos tempos, usar a palavra “liberdade de expressão” nas redes subitamente fez você ganhar pecha de fascista.
Já vi isso acontecer algumas vezes, e poderia mandar links do Twitter para provar, se acessá-los via VPN não fosse me custar alguns meses de salário. Mas sei recitar meio de cor o diálogo que costuma se seguir. Caso você manifeste preocupação sobre excessos no bloqueio de um perfil de rede social, logo será respondido por alguém que vai dizer que a liberdade de expressão não é absoluta. Que algumas formas de discurso – como apologia ao nazismo, injúria racial, incitação ao crime e calúnia – são proibidas por lei. E que restringir esse tipo de coisa é importante para preservar a própria liberdade de expressão das outras pessoas.
Todos os argumentos me parecem razoáveis, exceto pelo fato de responderem a um espantalho que nem sei se existe. Não tenho certeza se conheço alguém, afinal, que seja a favor da versão radical da liberdade de expressão em que tudo pode ser dito. A imensa maioria de nós é contra passar segredos militares para espiões russos, dar receita de bomba atômica ao Estado Islâmico, postar o endereço de uma pessoa conclamando gente a ir agredi-la, e assim por diante, a ponto de parecer desnecessário discutir isso.
A questão é que existe um salto lógico enorme entre aceitar que a liberdade de expressão pode ter restrições eventuais e concordar com a derrubada de cada um dos mais de cem perfis bloqueados por Alexandre de Moraes. Aliás, é difícil até mesmo concordar ou discordar com a maior parte delas, porque as fundamentações para a conduta não têm sido tornadas públicas na maior parte dos casos, o que por si só já é um problema grande.
Para além disso, parece ter se perdido a distinção entre retirar conteúdo abusivo das redes ou punir seus autores e ordenar a remoção de um perfil – o que para muita gente constitui censura prévia. Crimes de calúnia ou injúria racial podem existir na Justiça brasileira, mas não existe a pena de silêncio eterno aos seus culpados. Novamente, a resposta à crítica costuma mirar um espantalho, com argumentos como “temos que retirar o acesso às redes antes que crimes sejam cometidos” ou “se esperarmos a informação ser postada, será tarde demais.” O que, novamente, faz sentido conceitual em certos casos – se alguém estiver usando o X para coordenar uma invasão em curso do Congresso Nacional, é perfeitamente razoável que se derrube um perfil. Assim como, em véspera de eleição, a celeridade do próprio Moraes em remover fontes de notícias falsas talvez tenha sido bem-vinda.
Mas a democracia brasileira sobreviveu por ora, e não parece haver a mesma pressa nesse momento. É claro que alguns vão invocar alguma forma de “ameaça permanente à democracia” representada pelas redes sociais. Mas sendo bem sincero, a ideia da ameaça permanente – seja ela o terrorismo, o comunismo, o imperialismo ou o que quer que seja – costuma ser a desculpa pra todo regime de exceção que já surgiu no mundo.
O que me parece ter se perdido da forma mais inexplicável de todas, porém, é o questionamento sobre o motivo pelo qual estamos fazendo tudo isso. Ainda que Musk me pareça ter razão em discordar de algumas das ordens judiciais recebidas pelo X, é óbvio que ele não está acima da lei, e que se a empresa dele se recusa a cumprir ordens, a Justiça pode mandar fechá-la. Mas existe um oceano de distância entre tirar o X do ar no Brasil e multar o cidadão que ouse acessar seu conteúdo por uma VPN, já que não parece haver crime que possa ser cometido pelo mero consumo de informação.
Algo que costuma passar despercebido nessa discussão, porém, é que exceções razoáveis à liberdade de expressão nem sempre têm a ver com necessidade de sigilo. Boa parte de nós está OK com a ideia de que apologia ao nazismo ou injúria racial sejam crimes, mas isso tem mais a ver com delinear os limites do discurso socialmente aceitável do que com proteger algum segredo: pelo contrário, todo mundo está careca de saber que cara tem um insulto racista. Da mesma forma, você não pode fazer apologia ao nazismo, mas qualquer um pode comprar ou baixar uma cópia de Mein Kampf pra ler – e mais do que isso, é bem importante que alguém o faça para que possamos seguir discutindo o que se passava na cabeça de Hitler.
Com isso, a decisão de impedir que um cidadão comum use uma VPN para acessar o X – não para espalhar discurso de ódio, o que tornaria a proibição bastante razoável, mas para ler conteúdo gerado fora do país – parece inexplicável. Jornalistas cobrem o que se passa nas redes sociais fora do país, pesquisadores estudam isso, e cidadãos comuns têm direito à curiosidade. Bloquear acesso a esse conteúdo parece denotar uma mistificação estranha do mal que uma rede social pode causar, como se o X contivesse alguma espécie de basilisco capaz de destruir a sociedade meramente pelo fato de ser observado.
Para além disso, a decisão abre um precedente nefasto de que o cidadão brasileiro só pode acessar conteúdo que seja potencialmente censurável pela Justiça. O X retirar seu escritório no Brasil, afinal, apenas o colocaria no mesmo balde de milhares de jornais, redes sociais, blogs e sites que também não têm um. Dizer que não se pode acessá-los porque a Justiça brasileira não tem poder para filtrar o que eles dizem é retroceder a um regime semelhante ao dos órgãos regulatórios encarregados de aprovar conteúdo previamente durante a ditadura militar.
Me parece desnecessário dizer que isso não é desejável – e que parece importante lutar pelo direito do cidadão em acessar conteúdo, independente do quanto os poderes vigentes simpatizem com ele. Existem inúmeros exemplos de como o acesso a conteúdo vindo do exterior foi um bastião de resistência contra regimes autoritários, da Radio Free Europe aos pen drives jogados sobre a Coreia do Norte. Você pode chamar de imperialismo, mas considerando que Kim-Jong Un se defende jogando papel higiênico e baganas de cigarro, eu prefiro estar do lado que faz guerrilha cultural do que daquele que fecha as fronteiras da informação.
Mas afora algumas entidades como a OAB e o Partido Novo, quase ninguém esperneou contra a medida, e mesmo organizações tradicionais de defesa da liberdade de expressão parecem se importar só quando isso acontece na Turquia. Pode ser que todo mundo tenha decidido ignorar a multa, baixar uma VPN e tocar a vida, já que é difícil rastrear quem o faz – mas isso também me parece ruim, já que uma lei que ninguém cumpre desmoraliza a própria lei. Então tenho a impressão de que deveríamos estar falando sobre isso, ao invés de termos entrado em estado de tolerância – com exceção da base bolsonarista, a quem eu detesto ter que dar razão.
E se resolvi escrever essa coluna é para tentar entender esse silêncio. Há dez anos, esse tipo de restrição seria confrontado pela grande mídia e pela maior parte da intelectualidade do país. Mas alguma coisa aconteceu no meio tempo, que parece ter sido justamente a ascensão do populismo de direita. Usando as redes sociais de forma muito mais efetiva do que a competição, o bolsonarismo e seus congêneres patrolaram o lugar de fala da mídia tradicional, ganharam mentes e corações e mudaram o roteiro da política ao redor do mundo.
Com isso, talvez seja natural que a atenção do discurso de esquerda tenha se voltado para os donos do campinho. De ferramentas de mobilização saudadas durante a Primavera Árabe e os movimentos sociais do início de 2010, as redes sociais se transformaram em representantes do grande capitalismo, e termos como “fake news”, “big techs”, “algoritmos” e “ guerrilha psicológica” passaram a nortear o debate. Eu diria que boa parte dessas críticas erra o alvo – as redes sociais podem ter piorado o mundo, mas isso provavelmente tem menos a ver com seus algoritmos do que com o comportamento de seres humanos em sociedade. Mas quando o resultado das eleições não nos agrada, é sempre mais fácil botar a culpa num grande vilão no que conceder que o eleitorado pensa diferente de nós.
Coloque nesse caldo de cultura um idiota como Elon Musk, que com uma fortuna de mais de 200 bilhões de dólares resolveu que a melhor coisa que poderia fazer com o dinheiro era comprar sua própria rede social para se tornar o maior influencer do mundo, e os lados já estão tomados de antemão. É óbvio que Musk é o inimigo, e que Alexandre de Moraes, cujas credenciais não eram nada elogiosas para a esquerda até ontem, será nosso aliado enquanto estiver usando todos os seus poderes (e mais alguns que não deveria ter) para enfrentá-lo. Até porque ele a gente não teria coragem de chamar de idiota, para não arriscar ser indiciado por atentar contra o Estado Democrático de Direito ou algo assim.
Quando os lados estão postos, tudo o que vem depois – seja fechar o X, proibir VPNs, ou mandar a polícia bater na sua porta para checar o cache do seu navegador – são apenas os ovos que se quebram para fazer a omelete. Ao se entrar numa guerra, afinal, a primeira coisa que se perde é a possibilidade de mudar de ideia. E a segunda é a capacidade de lembrar da razão pela qual se entrou nela – que, pasmem, era a defesa da democracia. Uma vez que a polarização se estabelece – e isso tem acontecido ao natural com quase qualquer assunto nos últimos anos, da ivermectina à taxa de juros – qualquer um que ouse expressar dúvidas é um apóstata. O que faz com que questionar se não estamos invadindo liberdades fundamentais torne você um provável fascista, ainda que ninguém consiga se lembrar muito bem por quê.
E se nosso tribalismo é mais profundo do que nosso apego a valores democráticos, é apenas natural que redes sociais tornem o mundo um lugar pior ao potenciá-lo. Mas a questão de se o mundo passaria melhor sem elas – como provavelmente passaria melhor sem armas nucleares ou sem o Jogo do Tigrinho – é algo para ser debatido com calma pela sociedade, e não decretado por um juiz numa sexta à noite.
E se estou gastando saliva com esse texto, é para tentar recuperar essas nuances. Lembrando que cada perfil apagado de uma rede social pela Justiça é um caso à parte. Que o ônus de demonstrar a validade de cada um deles deveria estar com quem manda apagar. E que os outros 215 milhões de brasileiros impedidos de acessar conteúdo publicado no exterior são um outro caso completamente diferente. Que não vi ninguém defender de forma coerente até agora, e que só me parece explicável pelo delírio paranoide do basilisco que derrubará a democracia. Como se a degeneração dessa última não passasse por nós mesmos, quando deixamos que nossa ânsia de silenciar a oposição nos leve a autorizar meios de exceção para isso.
E junto com as nuances, me parece necessário recuperar as palavras certas para descrever a situação. Uma das coisas que mais tem me incomodado é a criação de uma novilíngua orwelliana para descrever o problema, em que censura passou a ser descrita como “regulação das redes sociais”, “combate à desinformação”, “preservação da democracia” ou, no pior dos casos, “defesa da liberdade de expressão”. São palavras bonitas, mas não tenho dúvidas de que o pessoal que queimava livros na Alemanha nazista usava termos parecidos.
Como também não tenho muita dúvida de que existem argumentos razoáveis para censurar certos conteúdos e limitar a liberdade de expressão em certos casos. Mesmo entrar em guerra, no fim das contas, pode ser importante para manter a paz. Mas ter razões para entrar em guerra não justifica que devêssemos chamar a invasão de Israel ao território palestino de “missão de paz”. Pelo contrário, existem boas razões para chamá-la de “guerra”, que vão desde as dezenas de milhares de mortos até a simples honestidade intelectual. Da mesma forma, tratar o silenciamento judicial pelo nome correto ajuda a nos manter honestos, e lembrar que ele deveria ser a exceção, e não a regra.
É censura sim. E se você quer defendê-la, que tenha a coragem de chamá-la pelo nome.
Olavo Amaralé médico, escritor e professor da UFRJ. Foi neurocientista por duas décadas e hoje se dedica à promoção de uma ciência mais aberta e reprodutível. Coordena a Iniciativa Brasileira de Reprodutibilidade, uma replicação multicêntrica de experimentos da ciência biomédica brasileira, e o No-Budget Science, um coletivo para catalisar projetos dedicados a construir uma ciência melhor. Como escritor, é autor de Dicionário de Línguas Imaginárias e Correnteza e Escombros
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