Coluna

João Paulo Charleaux

Feliz Ano Novo, com 120 guerras em andamento no mundo

31 de dezembro de 2024

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Número de conflitos armados cresce sem parar desde os anos 1990, com Oriente Médio e Norte da África no topo da lista

Existem 120 conflitos armados em curso no mundo, nos quais pessoas como nós estouraram balas e bombas à meia-noite, em vez de rojões e espumantes. De acordo com dados do CICV (Comitê Internacional da Cruz Vermelha) publicados em 2024, esses conflitos envolvem 60 dos 193 Estados reconhecidos como tais pelas Nações Unidas, o que significa dizer que 31% dos países do mundo enfrentam situações de conflito armado neste momento.

O Brasil não é um desses países. A situação de violência armada brasileira é grave, o país tem um altíssimo número de homicídios, com gravíssimas violações dos direitos humanos, além da presença de grupos armados que dispõem de armas e de munições de perfil militar, mas, juridicamente, essa não é uma situação classificada como guerra civil, em termos leigos, ou como um Cani (Conflito Armado Não Internacional), em termos jurídicos. O debate em si vale um texto à parte, mas para simplificar a questão agora, basta dizer que o Brasil não está em guerra porque não aplica o direito correspondente às situações de guerra, como preferiu fazer, por exemplo, o Equador, onde o presidente, Daniel Noboa, declarou formalmente estar em guerra civil desde janeiro de 2024. Ou como a vizinha Colômbia, que é um caso mais conhecido.

Existem 120 conflitos armados em curso no mundo, nos quais pessoas como nós estourarão balas e bombas à meia-noite, em vez de rojões e espumantes

A maior parte dos conflitos armados são os de caráter não internacional. Chamemos de “guerra civil” para simplificar. Ou seja, são situações como a do Equador ou da Colômbia, que envolvem as Forças Armadas locais contra grupos armados organizados de perfil militar.

Esse foi o setor em que a violência mais cresceu: nos anos 2000, havia 30 guerras civis em curso no mundo. Neste ano, são mais de 100, nas quais estão envolvidos 120 “atores não estatais”; nome que é dado para abarcar todo tipo de ator armado que não tenha caráter governamental, como guerrilhas, frentes de libertação nacional, grupos separatistas, cartéis, facções criminosas e o que muitos Estados chamam simplesmente de grupos terroristas, desde que possuam uma organização interna de perfil militar e tenham capacidade de manter operações sustentadas e de grande envergadura.

Além das guerras civis, os conflitos armados internacionais também vêm crescendo de forma sustentada desde os anos 1990, embora em menor ritmo. O exemplo mais conhecido, hoje, é o do conflito entre a Rússia e a Ucrânia, que já dura mais de dez anos, desde que Moscou invadiu e ocupou porções do território ucraniano pela primeira vez. 

A questão de Israel é juridicamente mais complicada, porque envolve Forças Armadas estatais, no caso israelense, contra grupos armados organizados que operam a partir do território de outros Estados, como no caso do Hamas em Gaza, do Hezbollah no Líbano e dos houtis no Iêmen. Já os choques entre Irã e Israel são claramente um conflito interestatal.

Os dados produzidos pelo CICV sobre conflitos armados no mundo são coincidentes com o que apontam outros monitoramentos semelhantes. A Academia de Direito Internacional Humanitário e de Direitos Humanos de Genebra, por exemplo, computou 110 conflitos armados de todos os tipos em curso em 2024, alguns dos quais estão em andamento há mais de 50 anos. 

Norte da África e Oriente Médio são as regiões mais conflitivas do mundo, com 45 conflitos deflagrados. Egito e Turquia vivem situações de conflito armado interno, por exemplo, embora pouco se fale a respeito.  

No restante da África, há conflitos internos em andamento em Burkina Faso, Camarões, República Centro Africana, República Democrática do Congo, Etiópia, Mali, Moçambique, Nigéria, Senegal, Somália, Sudão e Sudão do Sul. Em vários desses contextos ocorre a interferência de atores estatais externos, como a França, e também de grupos privados de combate, como o russo Wagner.  

Em alguns casos, como o da Síria, a guerra, embora seja sempre violenta e destrutiva, abre a possibilidade de conformação de um novo status quo, que possa derrubar um regime sabidamente violento e opressor, abrindo espaço para uma ordem futuramente mais pacífica.

A violência organizada e ritualizada tem sido parte da história da humanidade desde o Paleolítico, há 13.400 anos, como indicam as descobertas arqueológicas feitas nos anos 1960 em Jebel Sahaba, região entre o Sudão e o Egito. As ossadas descobertas ali e hoje mantidas na sala 64 do Museu Britânico, em Londres, mostram sinais de confrontos brutais, nos quais nem as crianças foram poupadas. Saber que temos origens violentas, no entanto, surpreende menos que constatar o quanto fomos incapazes de alterar esse traço humano desde então.

João Paulo Charleauxé jornalista, escritor e analista político. Foi repórter especial, editor e correspondente do Nexo em Paris. Trabalhou por sete anos no CICV (Comitê Internacional da Cruz Vermelha) em cinco diferentes países, cobriu a guerra nas fronteiras de Israel com Gaza e o Líbano, a crise política e humanitária no Haiti e o tsunami no Chile. Pela Cia das Letras, publicou o livro “Ser Estrangeiro – Migração, Asilo e Refúgio ao Longo da História” e prepara um novo livro, sobre “As Regras da Guerra”, mesmo tema de uma série publicada na Folha em 2023-2024. Ao longo dos últimos 25 anos, escreveu no Estadão, no Globo, na Piauí, no UOL e na Carta Capital. Participou como comentarista na CNN e na CBN. Trabalha principalmente com temas ligados ao direito internacional aplicável aos conflitos armados.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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