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O homem mais rico do mundo, Elon Musk, está usando seu poder econômico e seu potente alcance na plataforma X para desestabilizar governos identificados como de esquerda e promover, no lugar deles, a ascensão de políticos e de partidos de extrema direita.
Nessa cruzada, o dono de algumas das maiores empresas do mundo será ainda revestido de prerrogativas e de proteções inéditas a partir de 20 de janeiro, quando passará a ser chefe do Departamento de Eficiência Governamental criado por Donald Trump – homem que, apesar de ser responsável por um dos mais espetaculares e inacreditáveis assaltos à democracia na história da humanidade, no 6 de janeiro de 2021, recebeu, ainda assim, US$ 75 milhões em doações de campanha de Musk e teve o magnata ao seu lado em palanques e comícios.
Não há meios conhecidos para deter Musk nessa dupla condição, de megaempresário e membro de um governo atômico
Não há meios conhecidos para deter Musk nessa dupla condição, de megaempresário e membro de um governo atômico cujo líder despreza os pesos e contrapesos sobre os quais estão fundamentadas todas as democracias contemporâneas.
Como bem notou o presidente da França, Emmanuel Macron, em uma conferência com embaixadores estrangeiros na segunda-feira (6): “Dez anos atrás, se alguém tivesse dito que o proprietário de uma das maiores redes sociais do mundo estaria apoiando uma onda internacional reacionária e interferindo diretamente nas eleições, inclusive na Alemanha, quem acreditaria?”, referindo-se ao fato de Musk ter chamado o chanceler alemão Olaf Scholz de tirano e estar assediando outros governos europeus com campanha semelhante.
Alguém sempre poderá dizer que donos de jornais e revistas exercem um papel analogicamente semelhante ao de Musk, desde pelo menos a invenção da imprensa por Gutemberg, como fizeram, aliás, Assis Chateaubriand e Roberto Marinho, aqui mesmo, no Brasil. Mais recentemente, filantropos como George Soros também passaram a financiar uma galáxia de ONGs e think tanks que exercem influência sensível no debate público, contribuindo para a formação de certas correntes de opinião e, portanto, influenciando o voto dos eleitores em candidatos de esquerda e o voto de parlamentares em pautas legislativas tidas como progressistas.
Musk recorre ao exemplo de Soros para justificar sua própria cruzada política, com sinais ideológicos trocados, mas omite nessa comparação uma diferença fundamental: ele é um caso único de manipulação direta de informações mentirosas para construir campanhas difamatórias de alcance global contra setores políticos dos quais discorda. Uma coisa é defender pautas como aborto, feminismo e meio ambiente por meio do financiamento de ONGs que atuam nesses campos, outra bem distinta é dizer ao mundo que o primeiro-ministro do Reino Unido está envolvido no acobertamento de casos massivos de estupro contra meninas de 12 anos.
O primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, pertence ao Partido Trabalhista, que está à esquerda dos conservadores no espectro político local. Antes da carreira política, ele chefiou a promotoria pública britânica entre 2008 e 2013, período em que se revelou a existência de um esquema de prostituição infantil que havia ocorrido no norte da Inglaterra nos anos 1990. Starmer teve atuação elogiada em muitos sentidos, mas é criticado por ter decidido que algumas dessas investigações deveriam ocorrer em nível local.
A história é exemplar do método de ação de Musk, que ressuscitou essa história na internet e a reconstruiu em novos termos, colocando Starmer quase como coautor dessas atrocidades, sem que exista qualquer evidência nesse sentido. Além do mais, Starmer assumiu como premiê apenas em julho de 2024. Antes dele, os conservadores passaram longos 14 anos no poder sem que abrissem uma comissão de inquérito ou sem que nacionalizassem a questão, mas nada disso entra na construção narrativa escandalosa de Musk, que pede agora abertamente a renúncia do primeiro-ministro britânico e a dissolução de todo o Parlamento.
Na Alemanha, Musk chamou o primeiro-ministro Olaf Scholz, social-democrata, de “idiota incompetente” e anunciou que fará uma entrevista com Alice Weidel, uma das estrelas da AfD (Alternativa para a Alemanha), partido político de extrema direita que ele vem promovendo com vistas à eleição nacional de 23 de fevereiro.
O Brasil de 2024 foi um prenúncio de tudo isso. Aqui, Musk aliou-se a políticos e influenciadores fiéis ao ex-presidente Jair Bolsonaro para confrontar o Judiciário e atiçar uma turba raivosa e radical, saudosa da ditadura (1964-1985). Vendeu ao mundo a ideia de que se tratava do confronto entre um defensor das liberdades contra um governo tirano, quando, na verdade, alimentava as franjas mais radicais e reacionárias da política nacional.
Um dos poderes que Musk terá, como membro do novo governo americano, é o de acessar um universo de dados de pessoas do mundo todo, usando para isso as agências de inteligência e os dispositivos legais extremamente permissivos que foram herdados do pacote judicial que se seguiu ao 11 de setembro de 2001, e permaneceram inalterados desde então.
Não há precedentes para esse tipo de ação desestabilizadora transfronteiriça que tem como agente uma única pessoa que concentra em si poderes praticamente ilimitados, enquanto se esconde atrás do argumento falacioso de que não faz mais que defender a liberdade de expressão.
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João Paulo Charleauxé jornalista, escritor e analista político. Foi repórter especial, editor e correspondente do Nexo em Paris. Trabalhou por sete anos no CICV (Comitê Internacional da Cruz Vermelha) em cinco diferentes países, cobriu a guerra nas fronteiras de Israel com Gaza e o Líbano, a crise política e humanitária no Haiti e o tsunami no Chile. Pela Cia das Letras, publicou o livro “Ser Estrangeiro – Migração, Asilo e Refúgio ao Longo da História” e prepara um novo livro, sobre “As Regras da Guerra”, mesmo tema de uma série publicada na Folha em 2023-2024. Ao longo dos últimos 25 anos, escreveu no Estadão, no Globo, na Piauí, no UOL e na Carta Capital. Participou como comentarista na CNN e na CBN. Trabalha principalmente com temas ligados ao direito internacional aplicável aos conflitos armados.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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