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Em 13 de maio de 1888, a então princesa Isabel assinou a Lei Áurea e formalizou a extinção da escravidão no Brasil. Porém, a liberdade prometida praticamente limitou-se apenas ao papel: a maioria dos negros e negras permaneceram escravos, de forma ilegal, nos mais diversos recantos do país, enquanto outro expressivo contingente foi relegado à marginalidade, sem amparo do Estado e sem condições de prosseguir com uma vida minimamente digna. Apesar disso, o mês de maio é mais uma oportunidade que temos para refletirmos sobre o racismo nosso de cada dia e nos perguntarmos onde de fato está a liberdade e a justiça que tanto almejamos.
“Você é racista?” Se perguntarmos isso a algum amigo ou conhecido, o mais provável é que recebamos um sonoro e veemente “não” como resposta. Qualquer pesquisa vai diagnosticar o Brasil como um dos países mais racistas do mundo, mas poucos são os brasileiros dispostos a reconhecerem que são preconceituosos. Muitos parecem ter vergonha de fazê-lo para o próximo, enquanto outra boa parcela da sociedade tenta enganar a si mesma, apegando-se a uma concepção rasa do que é ser racista.
Quase todo mundo acha que o preconceito está no outro, mas quase nunca em si. Adepta ao discurso de que “todo mundo é igual”, a maioria de nós tem sido madura o suficiente para admitir que o racismo é perverso, mas não madura o bastante para se achar capaz de cometer perversidades. E o maior problema da negação do racismo em si próprio é que isso se torna um entrave na luta contra ele.
É salutar reconhecer que há motivação racial por trás de uma série de tragédias que se repetem diuturnamente em nosso país. Uma delas é o extermínio de jovens negros e pobres. De acordo com pesquisa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, dos 650 mortos pela Polícia Militar da Bahia em 2019, 97% eram negros. “Vidas negras importam” foi uma das frases mais compartilhadas nos últimos meses, e a resposta está em números como esses, que revelam a face mais hedionda e sanguinária do racismo.
Será que a realidade dos negros e negras brasileiros mudou tanto assim depois da abolição da escravatura? Naquele período, o índice de mortalidade entre os escravizados era altíssimo, tanto pelas más condições sanitárias quanto pela alimentação precária, trabalho sub-humano e os constantes assassinatos. Hoje em dia, a situação da juventude negra das periferias não é semelhante a isso? Além de dizer que vidas negras importam, é necessário fazer essas reflexões de maneira mais contundente; não podemos ficar só na militância das redes sociais.
O mês de maio é mais uma oportunidade que temos para refletirmos sobre o racismo nosso de cada dia e nos perguntarmos onde de fato está a liberdade e a justiça que tanto almejamos
Ainda sobre o assassinato de jovens negros e negras, os estados de São Paulo e Rio de Janeiro também se destacam no ranking. “Enquanto na Bahia os negros são 76% [da população], em São Paulo são 35%. No entanto, ao analisarmos a proporção de negros entre as vítimas de violência letal, a predominância de pretos e pardos é bem superior à composição da população, ou seja, negros são os que mais morrem independentemente do tamanho da população negra do lugar”, diz relatório da Rede de Observatórios da Segurança.
Sem sombra de dúvidas, as ações policiais são mais violentas contra pessoas negras, que frequentemente são tachadas de criminosas sem qualquer ato flagrante. A cor da pele já é suficiente para que sejamos rotulados. A sociedade precifica a vida humana com base na questão racial. Entendo quando dizem que a carne negra é a mais barata do mercado.
Além dessa tragédia social, há uma série de outros problemas que acometem a parcela negra da sociedade, sobretudo em tempos de pandemia. De acordo com a FGV Social, pretos e pardos tiveram uma perda de 21,8% e 21,4%, respectivamente, em suas rendas. Os brancos sofreram perda menor, de 20,1%. Atualmente, os negros representam 75% dos mais pobres no Brasil, enquanto os brancos estão entre os 70% mais ricos. Para os negros e negras é muito mais difícil encontrar emprego, recolocar-se no mercado de trabalho, empreender, conseguir apoio, orientações e crédito financeiro. Nesse sentido, vale destacar a situação das mulheres negras, cujo caminho é ainda mais pedregoso: sofrem com o racismo e o machismo.
Políticas públicas certamente não resolveram essa situação histórica em um passe de mágica, mas não há dúvida de que são necessárias. Em Salvador, lutamos pela implantação de uma Delegacia Especializada no Combate a Crimes Raciais e aos Delitos de Intolerância Religiosa. Com uma delegacia especializada, que acolha aqueles que precisam dela, sem dúvida vamos estimular que as vítimas denunciem e busquem justiça.
É inadmissível que a Bahia, um dos estados mais negros do país, ainda seja tão preconceituoso, com tantos registros de casos de racismo e injúria racial – isso sem contar a subnotificação, porque muitas vítimas não denunciam. O poder público é obrigado a zelar pelo bem-estar e pela segurança dos seus cidadãos pagadores de impostos, independentemente da cor da pele, crença ou gênero.
Ireuda Silva
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