Coluna

Januária Cristina Alves

Além das curtidas: como os jovens se veem na internet

05 de abril de 2024

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Universo online exibe as mazelas do nosso tempo em uma escala e velocidade nunca antes experimentadas. Como lidar com tudo isso?

Um tradicional colégio particular de São Paulo emitiu, semanas atrás, um comunicado aos pais alertando sobre a existência de um grupo de estudantes no WhatsApp disseminando conteúdo pornográfico, de apologia ao nazismo e incitação ao suicídio. Num outro colégio da mesma capital, um grupo de pais enviou uma carta à direção pedindo que alunos sejam proibidos de usar o celular em todo o ambiente escolar, tanto nas aulas quanto em intervalos e recreio, afirmando que o aparelho vicia e causa sérios danos à saúde mental de crianças e adolescentes. Pais estimulam os filhos a gravar vídeos e postar nas redes sociais falando palavrões dentro de um quarto fechado para ensiná-los “a desabafar e a lidar com o estresse provocado por emoções fortes”. Pais compartilham fotos de seus filhos bebês em todas as situações possíveis expondo essas crianças à perigos de toda ordem, desde pedofilia até propagandas inadequadas para esse público.

Crianças e adolescentes são instados a seguir receitas formuladas por quem não está na sua pele – e nem nas redes – e que, portanto, estão fadadas a fracassar

No mesmo ambiente, adolescentes exibem seus roubos nas redes sociais disfarçados em perfis que exibem a fruta mirtilo, por exemplo. Crianças com menos de 12 anos sofrem perseguição no ensino infantil e no primeiro ciclo do fundamental devido à deficiência física, autismo ou peso. Também são vítimas de racismo e aporofobia. Nessa mesma idade, crianças são estimuladas a usar produtos dermatológicos para “cuidar da pele” ou produtos de beleza para “ficarem mais bonitas” por influenciadoras. Jovens se automutilam e postam vídeos ensinando aos seus pares como fazer isso sem “deixar rastros”.

O jornal americano The Wall Street Journal e pesquisadores da Universidade de Stanford e da Universidade de Massachusetts (EUA) revelaram que o Instagram ajudou a conectar predadores sexuais a uma vasta rede de contas abertamente dedicadas à compra de conteúdo sexual para menores. A Anistia Internacional publicou dois relatórios mostrando que o sistema de recomendação do TikTok e o seu sistema de coleta de dados são um risco à saúde mental das crianças. Uma matéria da rede NBC News apontou que o Discord, uma plataforma de bate-papo muito usada entre os que jogam videogames, tem sido usado para sequestrar, extorquir menores e comercializar material de exploração sexual infantil. No Brasil, o número de denúncias de abusos sexuais contra crianças e adolescentes na internet bateu recorde em 2023. De acordo com uma pesquisa da Safernet Brasil os casos reportados à organização cresceram 77% em relação a 2022 e totalizaram 71.867. Antes, o maior número registrado havia sido em 2008, com 56.115 casos.

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Essas são situações cotidianas que todos nós, que estamos conectados à internet, já vimos, e diante de todas elas, nos assombramos. O universo online exibe, ao vivo e a cores, as mazelas do nosso tempo em uma escala e velocidade nunca antes experimentadas. Como lidar com tudo isso? Como educar as nossas crianças e jovens a lidarem com esse tipo de situação com equilíbrio, ética e sanidade mental? Se não há uma única resposta para essas perguntas é importante que a sociedade pare para ouvir o que eles, os jovens, têm a dizer. Foco de toda a atenção da sociedade, dificilmente eles são escutados com o respeito e a seriedade que merecem. Parte mais interessada no caso, são instados a seguir receitas formuladas por quem não está na sua pele – e nem nas redes – e que, portanto, estão fadadas a fracassar.  

Nesse sentido, gostaria de compartilhar aqui algumas das falas dos adolescentes que entrevistei para o podcast “curti, e daí”, realizado em parceria com o Instituto Vero. Nessa temporada, alteramos o formato para videocast, ampliando a experiência para o público ver e ouvir o que os adolescentes pensam e como imaginam poder transformar a internet num lugar melhor de se conviver.  Os temas são diversos e muito presentes nas redes sociais: discurso de ódio, influência responsável, acesso às notícias, fake news, saúde mental (nessa edição há também um material exclusivo para os educadores, as “Trilhas Pedagógicas”). Em cinco episódios em formato de podcast e agora mais três como videocast, podemos atestar que eles estão atentos ao que está acontecendo ao seu redor, sim, e que podem fazer a transformação necessária nessas mídias.   

“…Você precisa tirar um momento do seu dia para olhar ao redor e falar, meu Deus, isso tudo faz sentido para a minha vida, para a minha realidade? O que eu estou lendo aqui, o que essa pessoa está me falando, faz sentido? Porque quando você é levado um pouco para essa emoção, e você meio que, com essa falta de ponderação das redes sociais, de passar, passar, passar, você acaba levando a fenômenos muito potentes hoje em dia, como a polarização. (…) Por isso, a importância de ter esse espaço com a escola, a família, todo o seu círculo social, que, de certa forma, pode trazer contrapontos ao que você pensa…”, dispara um garoto. 

“… é muito doido a gente pensar porque e quando (isso) começou… as redes sociais fazerem esse ambiente confortável pra gente insultar o outro, né? Foi a gente que simplesmente decidiu isso, ou eles que impuseram e a gente aceitou?”, reflete uma menina que cursa o ensino médio.

“Eu acho que a gente tem o hábito de ter tudo entregue na nossa mão. E a forma com que estão entregando as notícias, a forma que estão entregando a informação que está fora do mundo na nossa mão não é a forma mais fácil para a gente consumir esse conteúdo. E para a gente consumir qualquer conteúdo é muito fácil. Porque a gente tem muito acesso a tudo.  Se torna habitual entrar em rede social e consumir conteúdo que a gente não precisa…. tem informação que é densa. E é importante ter essas informações densas. Mas não é extremamente fácil”, conta uma outra garota. 

“…a internet virou esse espaço de reduto do discurso de ódio mesmo. É que as pessoas se colocam nesse lugar. A lei deveria, claro, ser aplicada. Deveria, sim, ter outras leis para fazer isso, como é o PL das fake news. Mas eu acho que é muito mais o trabalho da gente observar e denunciar quando essas coisas acontecem. Ó, isso aqui é discurso de ódio, isso aqui está errado, isso aqui é racismo, isso aqui é machismo. Porque a gente vê isso na internet, mas isso também acontece na vida real”, afirma um outro adolescente , que é membro do grêmio da escola.

Nem tudo está perdido, diria minha avó. Quem quiser conferir esse diálogo e também renovar as esperanças de que há uma mudança em curso que está acontecendo pela educação – vale dizer que esses meninos e meninas estão em escolas públicas e privadas desse Brasilzão – pode acessar o conteúdo no Spotify ou no YouTube do Instituto Vero. Não por acaso, o nome do projeto é “curti, e daí?’, porque esses jovens sabem muito bem o peso de uma curtida, e o que vem antes e depois dela. Como sociedade, precisamos ajudá-los a cobrar a segurança digital a que têm direito, a proteção que é necessária para que cresçam em segurança e com saúde e mais, que é urgente ouvi-los para que, de fato, sejam protagonistas do seu tempo. Jovens empoderados se reconhecem como peça-chave para mudar o mundo.

Januária Cristina Alvesé mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews - Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação - ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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