Os desafios do governo Lula após os ataques golpistas

Debate

Os desafios do governo Lula após os ataques golpistas
Foto: Ueslei Marcelino/REUTERS - 09/01/2023

Vítor Sandes


25 de janeiro de 2023

Políticos pragmáticos têm muito a perder em situações de golpe e de instabilidade política. Ademais, o presidente tem sido muito bem-sucedido nas relações iniciais com o Congresso

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O fim melancólico do governo Bolsonaro se deu com a posse do atual presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, naquele 1º de janeiro de 2023, marcado pela reunião festiva e pacífica com a presença de milhares de pessoas. O início do novo governo contou com diversos atos simbólicos em prol da democracia, da representatividade e da inclusão e foi acompanhado por uma semana de posse de ministros, discursos, montagem de equipes e, até mesmo, polêmicas, como a que envolveu a atual ministra do turismo . A cobertura midiática se concentrou no que de novo estava acontecendo e como poderíamos projetar os próximos passos do atual governo.

Um acontecimento, no entanto, foi ainda mais relevante no início do governo Lula: o fatídico 08 de janeiro de 2023, marcado pela invasão da sede dos Três Poderes por uma multidão de bolsonaristas. Este foi o ato final da derrota bolsonarista nas urnas, ocorrida formalmente no dia 30 de outubro de 2022, quando houve o segundo turno das eleições presidenciais. O resultado, entretanto, não foi explicitamente reconhecido pelo ex-presidente da República e, mais claramente, nem pelos seus apoiadores.

O não reconhecimento do resultado das urnas pelo bolsonarismo era esperado. Há tempos o próprio ex-presidente questionava a validade dos resultados expressos via urnas eletrônicas. Os questionamentos sucessivos ao sistema de apuração de votos do Brasil, organizado e regulado pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral), levou à base bolsonarista a acreditar, de forma convicta, que as eleições tinham sido fraudadas. Logo, a partir dessa lógica, era preciso reagir.

Após as eleições, precisamente no dia seguinte, em 31 de outubro, bolsonaristas ocuparam estradas pelo país, realizando manifestações e bloqueios como uma forma de protestar contra o resultado das urnas. A pauta dos manifestantes atentava diretamente contra a democracia, pois questionavam o mecanismo mais elementar de um regime democrático: a eleição. Por isso, os atos realizados desde então têm sido entendidos como golpistas ou antidemocráticos.

Além dos bloqueios, durante esse período de novembro até o início deste ano, acampamentos foram montados por bolsonaristas em frente a quartéis do Exército e de outras instituições militares como forma de pressionar para que houvesse uma reação contra o resultado das eleições e a favor de uma intervenção militar. Ainda que os militares não tenham saído dos quartéis como forma de apoiar um autogolpe ou golpe, também não houve uma reação em contrário como forma de desmobilizar tais ações antidemocráticas.

A fim de conter a situação durante esse período, o STF (Supremo Tribunal Federal) garantiu as condições que debelaram qualquer tentativa golpista contra o Estado democrático de Direito, culminando com a desobstrução dos bloqueios nas estradas e, mais recentemente, na desmobilização dos acampamentos bolsonaristas. E, ao Governo Federal, após os atos golpistas, coube decretar intervenção federal no Distrito Federal, como forma de tomar as rédeas da segurança pública no distrito onde estão sediados os Três Poderes.

Diferentemente de instituições como o STF, que tem tido um papel primordial na defesa da democracia, parte dos militares compactuaram com o receituário bolsonarista. Durante o governo anterior, quadros da ativa e da reserva ocuparam, sistematicamente, cargos da administração pública federal . Diante disso, participaram direta ou indiretamente de ações questionáveis do governo no combate à pandemia de Covid-19, bem como reforçaram a desconfiança em relação ao processo eleitoral brasileiro , alimentando o negacionismo eleitoral de parte mais mobilizada do bolsonarismo.

Golpes de Estado dependem também de apoio político e essa condição não estava satisfeita naquele 8 de janeiro. Não interessa à maior parte da classe política apoiar um golpe de Estado

O apoio explícito e velado de parte dos quadros da ativa e da reserva das Forças Armadas ao bolsonarismo ao longo dos anos tem se mostrado um obstáculo importante, sobretudo nesse início do governo. Caso houvesse uma atuação mais enérgica das Forças na defesa da democracia, rechaçando qualquer vínculo político com o bolsonarismo ou com qualquer outra força política, certamente o episódio de 08 de janeiro ou não teria acontecido ou teria tido muito menor impacto. Os militantes bolsonaristas que invadiram a sede dos Três Poderes apostaram no apoio de parte das forças militares. Sabemos hoje que isso não foi suficiente para que um golpe, nos moldes clássicos, fosse concretizado.

Golpes de Estado dependem também de apoio político e essa condição não estava satisfeita naquele 8 de janeiro. Não interessa à maior parte da classe política apoiar um golpe de Estado. Políticos pragmáticos têm muito a perder em situações de golpe e de instabilidade política. Ademais, Lula tem sido muito bem-sucedido nas relações iniciais com o Congresso. Mesmo antes de iniciar seu governo, o petista e sua equipe de transição conseguiram aprovar uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional) que permitiu recursos extras (mais de 145 bilhões de reais) – além do estabelecido pelo teto de gastos – para poder financiar políticas públicas importantes em 2023, como Bolsa Família e Farmácia Popular.

Lula conseguiu construir um gabinete (conjunto de ministérios) multipartidário que possibilita condições iniciais de governabilidade. O atual presidente conta com a participação de nove partidos nos 37 ministérios do seu governo: PT, MDB, PCdoB, PDT, PSB, PSD, Psol, Rede e União Brasil. Se todos os deputados federais desses partidos apoiarem as medidas de interesse do governo, o presidente contará com uma base de apoio de 262 deputados federais (51% do total na Câmara dos Deputados) e de 44 senadores (54,3% do total no Senado Federal).

Isso seria suficiente para aprovar projetos de lei de interesse do Executivo, que necessita de uma maioria simples, mas não seria suficiente para aprovar uma PEC, que deve contar com o apoio de 3/5, isto é, 308 votos na Câmara e 49 votos no Senado. Mudanças importantes são realizadas via alteração constitucional e, por isso, é necessário contar com um apoio legislativo maior e estável.

Ainda existe a possibilidade de contar com o apoio de outros partidos nas acomodações em cargos de segundo escalão na administração direta (nos próprios ministérios, por exemplo) e indireta (autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista). Além disso, alguns membros de partidos que se colocam hoje como independentes, como Republicanos e PP, podem eventualmente apoiar medidas de interesse do governo, a depender dos acordos a serem estabelecidos.

Para exemplificar como isso é possível de ser feito, o PT já declarou apoio à recondução de Arthur Lira (PP-AL) como presidente da Câmara. É preciso lembrar que, até recentemente, Lira apoiava Jair Bolsonaro e o seu partido era da base do governo anterior. Assim, é possível construir condições de governabilidade, inclusive, incrementando a base de apoio no Congresso.

Lula parece superar dois desafios iniciais de seu governo: conter o ímpeto golpista de bolsonaristas e criar as condições de governabilidade para que possa aprovar sua agenda de governo. Em relação ao primeiro desafio, tem sido muito bem-sucedido, pois a conjuntura favorável e a ação enérgica das instituições em conter o golpismo têm levado ao estreitamento de laços entre os Poderes e as instituições. No entanto, ressalta-se que para conter os arroubos golpistas é preciso submeter as FA, definitivamente, ao controle do poder civil.

Quanto ao segundo desafio, as condições iniciais têm sido promissoras, considerando a capacidade de Lula de se articular e costurar apoios. Mas a política é dinâmica e os custos de governabilidade podem rapidamente se modificar e levar o presidente a ter que refazer acordos e reacomodar aliados como forma de garantir estabilidade ao seu governo.

Vítor Sandes é cientista político, doutor em Ciência Política e professor da UFPI (Universidade Federal do Piauí).

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