Incerteza e a arte

Ensaio

Incerteza e a arte
Foto: Andreas Otero/

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Jochen Volz


04 de setembro de 2016

A informação se perde e a dúvida persiste, mas a arte pode moderar esses paradoxos ao operar fora dos sistemas padrão, escalas e normas, pela introdução de modelos e medidas alternativas

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Sentida tanto nas humanidades como em outras ciências, a incerteza parece pautar os modos pelos quais entendemos ou não nosso estar no mundo hoje: degradação ambiental, violência e ameaças a comunidades e à diversidade cultural, aquecimento global, colapsos econômicos e políticos, catástrofes naturais, vida devastada por atrocidades, doenças e fome são as matérias que nos circundam.

De acordo com Franco “Bifo” Berardi: “O caos é um ambiente complexo demais para ser decodificado pelas matrizes explanatórias disponíveis, é um ambiente em que os fluxos semióticos e os fluxos emocionais estão circulando com tamanha rapidez que nossa mente não consegue acompanhar”. Sentimos hoje o alcance da incerteza no dia a dia, cada vez mais cientes do fato de que existimos imersos em um meio governado por ela.

Mesmo que as predições de eventos futuros em nosso planeta tenham contradições, pensadores de todos os campos clamam por uma ação imediata. Exigem que se eleve a consciência coletiva em todo o globo para os desafios que nossas sociedades enfrentam neste momento. Mas há um longo percurso até que os currículos escolares, as pautas da mídia e os programas políticos abracem efetivamente essas questões como uma causa comum.

É nesse contexto que inicialmente partiu a pesquisa para a 32ª Bienal de São Paulo, não como uma exposição de arte pós-apocalíptica, mas sim como uma investigação para encontrar o pensamento cosmológico, a inteligência ambiental e coletiva e a ecologia sistêmica e natural.

As artes sempre trabalharam com o desconhecido. Historicamente, a arte insistiu em um vocabulário que levasse em conta a ficção e que qualificasse a incerteza. A informação se perde e a dúvida persiste, mas a arte pode moderar esses paradoxos ao operar fora dos sistemas padrão, escalas e normas, pela introdução de modelos e medidas alternativas. A arte se vale da incapacidade dos meios existentes para descrever o sistema de que somos parte – ela aponta para a sua desordem. O mais importante: a arte pode fazer isto porque junta naturalmente pensar e fazer, reflexão e ação. A arte está fundada na imaginação, e somente através da imaginação seremos capazes de conceber outras narrativas para nosso passado e novos caminhos para o presente.

discutir a incerteza também inclui processos de desaprendizagem e exige uma compreensão da diversidade do conhecimento.

“Incerteza viva”, título da 32a Bienal de São Paulo, fala sobre abraçar e habitar a incerteza. Ela reconhece as incertezas como um sistema de orientação gerador e se funda na convicção de que, para enfrentar objetivamente as grandes questões de nosso tempo, tais como o aquecimento global e seu impacto sobre nossos habitats, a extinção de espécies e a perda de diversidade biológica e cultural, instabilidade econômica e política, a injustiça na distribuição dos recursos naturais do planeta, a migração global e a assustadora disseminação da xenofobia, entre outras, é necessário separar a incerteza do medo. “Incerteza viva” está nitidamente ligada às noções endêmicas ao corpo e à terra, com uma qualidade viral em organismos e ecossistemas. Embora esteja relacionada à palavra crise, não lhe é equivalente. Incerteza é, sobretudo, uma condição psicológica ligada a processos individuais ou coletivos de decisão, descrevendo o entendimento e o não entendimento em uma dada situação. “Incerteza viva” é sentida em toda parte. É uma condição que se infiltra em nossas cabeças, nossos corpos, nas ruas, no mercado, na floresta ou nos campos. É contagiante, gera imagens, sons, cheiros, instabilidade e também entusiasmo e curiosidade. Ela pode ser vinculada a realidades sociais e mentais, a métodos artísticos, à epistemologia e a uma imaginação rebelde.

Diferentemente do que acontece em outros campos de pesquisa, a incerteza na arte aponta para a criação, levando em conta a ambiguidade e a contradição. A arte se alimenta de incerteza, acaso, improvisação, especulação e do acontecimento. Muitas vezes a arte se põe de fato a medir o imensurável. Ela abre passagem para o erro, a dúvida e até para os mais profundos receios, sem fugir deles nem os manipular. Os princípios criativos da incerteza podem propor outros meios de ação, lembrando, por exemplo, as formas mais elaboradas de improvisação no “free jazz” ou nos cursos de arte dramática. Aprender a conviver com a incerteza pode nos ensinar soluções. Mas discutir a incerteza também inclui processos de desaprendizagem e exige uma compreensão da diversidade do conhecimento. Descrever o desconhecido sempre implica interrogar o que pressupomos como conhecido e valorizar os códigos científicos e simbólicos antes como complementares que como excludentes. A arte promove um intercâmbio ativo entre pessoas, reconhecendo as  capacidades de orientação e construção a partir das incertezas. Logo, não faria sentido tomar os inúmeros métodos de raciocinar e de fazer da arte e aplicá-los a outros campos da vida pública?

Jochen Volz(1971, Braunschweig, Alemanha) é curador da 32ª Bienal de São Paulo. Foi diretor de programação das Serpentine Galleries em Londres, diretor artístico do Instituto Inhotim e curador do Portikus, em Frankfurt. Foi cocurador da mostra internacional da 53ª Bienal de Veneza (2009) e da 1ª Aichi Triennale, em Nagoya (2010), e curador convidado da 27ª Bienal de São Paulo (2006). Vive em São Paulo.

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