O Estado contra os índios

Ensaio

O Estado contra os índios
Foto: Ueslei Marcelino/Reuters

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Artionka Capiberibe


16 de julho de 2016

O Estado é um antagonista de peso, haja vista as políticas de desenvolvimento em curso, não importe o impacto que causem às populações indígenas

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Uma ideia antiga, de séculos, vigora em relação aos povos indígenas, a de que seriam sujeitos em transição e que, por isso, não lhes custaria renunciar a seus modos de vida em favor do modo de vida do “branco”. Mas, no que isso interessaria aos indígenas? O que ganhariam? E, que lugar na sociedade brasileira estaria reservado a eles?

A proposta é simples: vocês abrem mão de viver em (e de) suas terras, deixam de ser indígenas e podem “livremente” tornar-se pobres na sociedade brasileira. Uma troca bem explicada pelo xamã yanomami Davi Kopenawa: “[…] Sei apenas que a terra é mais sólida do que nossa vida e que não morre. Sei também que ela nos faz comer e viver. Não é o ouro, nem as mercadorias, que faz crescer as plantas que nos alimentam e que engordam as presas que caçamos! Por isso digo que o valor de nossa floresta é muito alto e muito pesado. Todas as mercadorias dos brancos jamais serão suficientes em troca de todas as suas árvores, frutos, animais e peixes”.   

O Legislativo coloca a questão indígena no jogo do poder. A recente indicação à presidência da Funai do general da reserva Roberto S. Peternelli pelo PSC (Partido Social Cristão) é obra deste jogo que, lembremos, viabilizou o governo interino.

A disputa, efetivamente, é em torno da terra, mais exatamente da Terra Indígena, TI, garantida pelo artigo 231 da Constituição de 1988. Conquista que, no entanto, não tem sido suficiente para assegurar a integridade física e social das populações indígenas, pois o Estado, que deveria fazer valer integralmente a lei, age de maneira, muitas vezes, divergente. Um exemplo desta dinâmica é o caso Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul. Em um dos mais recentes ataques de fazendeiros a aldeias indígenas, repetição de acontecimentos recorrentes, várias pessoas foram feridas e um jovem foi assassinado dentro de uma TI identificada e aprovada pela Funai (Fundação Nacional do Índio). O caso provocou uma (mais uma) diligência da CDHM (Comissão de Direitos Humanos e Minorias) da Câmara Federal que constatou , entre outras coisas, a negligência da polícia. Menos de um mês após este fato, uma liminar concedeu reintegração de posse do local à fazenda Yvu. Assim tem agido o Estado: o Executivo identifica a TI; o Legislativo denuncia a violência contra os índios; a polícia é morosa e omissa; e, por fim, o Judiciário intervém em favor do latifúndio.

O Estado é um antagonista de peso, haja vista as políticas de desenvolvimento em curso, não importe o impacto que causem às populações indígenas. Mas se há nele um inimigo declarado de fato, este está no Legislativo, na chamada bancada ruralista , que age em defesa de um modelo econômico dos tempos da colônia, o da exploração de commodities, que vigora não obstante o papel da agricultura no desmatamento e suas consequências para o planeta. A ação política desta bancada concentra-se em assaltar a legislação vigente , como se vê na PEC 215 , que propõe transferir para o Congresso a aprovação das demarcações e a ratificação das homologações de TIs, hoje atribuições do Executivo. A aprovação desta PEC significa travar completamente os processos de demarcação.

O Legislativo coloca a questão indígena no jogo do poder. A recente indicação à presidência da Funai do general da reserva Roberto S. Peternelli pelo PSC (Partido Social Cristão) é obra deste jogo que, lembremos, viabilizou o governo interino. Não há outra explicação para a entrega da Funai a um partido assumidamente conservador, cujos membros são, em sua maioria, integrantes da Frente Parlamentar Evangélica, que é linha auxiliar da bancada ruralista. Por isso não é de se estranhar que a indicação deste general (e de outros que possam vir) não seja baseada nas qualificações para assumir o cargo, mas em relações político-ideológicas vinculadas a interesses escusos, como o apoio do senador Romero Jucá (maior lobista da mineração em TI), e contrários aos direitos humanos, como a defesa à ditadura civil-militar de 1964, cuja memória carrega um saldo trágico para as populações indígenas: remoções involuntárias, estupros, trabalhos forçados ou de semiescravidão, prisões ilegais e assassinatos em massa, com cerca de 8.350 indígenas mortos (segundo a Comissão Nacional da Verdade ).

No mesmo dia em que esta indicação naufragava, por conta da forte reação contrária de organizações indígenas , indigenistas e da academia , a bancada ruralista aprovava um requerimento (número 292/16) solicitando, entre outras coisas, a quebra do sigilo fiscal e bancário de várias entidades e pessoas. Isto aconteceu na CPI que investiga a atuação da Funai e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em demarcações de terra. Instalada em 2015, na presidência de Eduardo Cunha (PMDB/RJ), esta CPI é presidida pelo deputado ruralista Alceu Moreira (PMDB/RS) e sua mesa é inteiramente constituída por membros da bancada ruralista.

A sessão que votou o requerimento 292/2016 deixa às claras seu objetivo, criminalizar o trabalho de indigenistas e antropólogos, afastando a Funai e o Incra dos processos demarcatórios, e, para tanto, não importam os meios. O requerimento foi classificado como “reservado” , por este motivo, não foi disponibilizado por via eletrônica na convocatória da sessão. Nesta, a reunião foi transformada em “reservada” impedindo a presença no plenário do público, das assessorias dos parlamentares e dos partidos. Depois disso, foi declarado aprovado pelo presidente da CPI, ainda que não houvesse na votação a presença da maioria dos membros da comissão, fato que está sendo interpelado junto com outros aspectos de cunho antirregimental em uma “questão de ordem”. O caráter sigiloso do requerimento manteve-se após sua aprovação, proibindo que fosse copiado e divulgado sob pena de quebra de decoro parlamentar. Enfim, uma sessão secreta cuja licitude está sob suspeição.

A disputa interna no Estado está cada dia mais acirrada, sendo a atual movimentação preocupante, pois é de se temer a política voltada aos indígenas de um governo provisório que chega ao poder com o apoio maciço da bancada ruralista. No entanto, não se pode perder de vista que os povos indígenas batem-se com o Estado, há séculos, e se resistem até hoje é porque veem a política como algo que está para além do Estado. É por isso que, a despeito de terem como armas apenas o corpo e a palavra, os povos indígenas se afirmam com força, conquistando e mantendo direitos nas “folhas de papel dos brancos”, ocupando gabinetes públicos (como estão fazendo hoje nas sedes da Funai de todo o país), reocupando com seus corpos as terras que são ancestralmente suas e usando o verbo para conseguir aliados e lutar contra um Estado que persiste em ser contra os índios.

Artionka Capiberibe é doutora em Antropologia Social (Museu Nacional/UFRJ), professora do departamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e integra a rede de especialistas do Groupe International de Travail pour les Peuples Autochtones (GITPA).

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