Audiências de custódia: um esforço para que o Judiciário cumpra a Constituição

Ensaio

Audiências de custódia: um esforço para que o Judiciário cumpra a Constituição
Foto: Rodi Said/Reuters - 17.08.2016

Carolina Haber


22 de janeiro de 2017

As audiências começaram a ser realizadas no Brasil em 2015, acreditando-se que, o encontro físico torne mais efetivo o controle judicial da prisão, mantendo-se preso apenas quem realmente represente um risco ao andamento do processo ou à sociedade

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No sistema prisional brasileiro encontram-se presos provisórios e condenados. Os provisórios são aqueles que estão presos enquanto respondem ao processo que apura se cometeram ou não o crime pelo qual foram acusados. As provas são produzidas, testemunhas são ouvidas, defesa e acusação se manifestam. Os condenados são os que já obtiveram uma decisão judicial dizendo que praticaram o crime.

Pela gravidade que representa a privação de liberdade de alguém, a prisão deveria se destinar apenas às pessoas que já sofreram uma condenação. Nosso sistema jurídico é claro ao dizer que todos têm o direito de provar sua inocência e, portanto, enquanto não estiver demonstrada a culpa, a prisão é excepcional. A lei diz que só pode ser decretada quando já há indícios suficientes da autoria e da ocorrência do crime e se a liberdade do réu representar comprovada ameaça à sociedade ou ao funcionamento regular do processo (risco de fuga, constrangimento às testemunhas ou destruição de provas). A ideia é que ao final do processo, se condenado, sua pena possa ser aplicada, mas não se trata, de forma alguma, de uma punição antecipada. Prisão cautelar e prisão pena são, portanto, muito diferentes.

O problema é que no Brasil a prisão cautelar tem se tornado a regra, antecipando-se a aplicação da pena sem que haja um juízo de condenação. De acordo com os dados de 2014 do Depen/MJ (Departamento Penitenciário Nacional), 41% dos presos no sistema prisional brasileiro são provisórios. No Estado do Amazonas, onde ocorreu recentemente uma chacina que culminou com a morte de 56 detentos , 66% dos presos são provisórios.

Na penitenciária agrícola de Monte Cristo, em Boa Vista, onde morreram 31 presos em razão de outra chacina, 64% dos presos são provisórios. O local tem capacidade para 750 pessoas, mas abrigava 1.475 presos.

De acordo com uma pesquisa realizada pelo Instituto Sou da Paz e a Associação pela Reforma Prisional do Cesec (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes), com dados de processos criminais da cidade do Rio de Janeiro de 2013, 7.734 pessoas foram presas e mantidas na prisão, em média, por 101 dias antes do julgamento. Dessas, 54,4% estiveram presas indevidamente porque foram absolvidas, tiveram seus processos arquivados, fizeram acordos com a justiça ou, apesar de condenadas, receberam penas mais brandas, como as restritivas de direitos, ou regimes menos gravosos de cumprimento, como o semiaberto ou o aberto, situações que não implicam em pena de prisão no sistema fechado.

Isso quer dizer que essas pessoas cumpriram uma pena mais rigorosa na fase processual do que quando condenadas e, por vezes, nem pena receberam ao final do processo, porque foram absolvidas. Entretanto, tiveram contato com um sistema absolutamente falido, pois superlotado, com condições precárias de higiene e saneamento, comida de má qualidade e péssimas acomodações. Sem falar no contato com presos mais experientes no crime, membros de facções, que acabam assumindo o vácuo deixado pelo Estado no tratamento dos presos.

O altíssimo número de presos provisórios no sistema penitenciário brasileiro é um verdadeiro barril de pólvora, uma fábrica de criminosos e uma pandemia de injustiças

Algumas medidas têm sido tomadas para amenizar essa situação e evitar que tantos presos provisórios permaneçam no sistema prisional. Uma delas relacionada com a modificação da regulamentação das medidas cautelares, entre as quais, a prisão provisória. A Lei 12.403, de 2011, alterou o Código de Processo Penal para estabelecer uma série de outras medidas cautelares diversas da prisão, concedendo ao juiz um rol de alternativas que lhe permitisse cumprir uma das determinações do próprio código: a prisão preventiva só será aplicada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar.

Apesar do recado ser claro – a prisão preventiva é exceção -, na prática, pouca coisa mudou. Os juízes acabaram não aplicando outras medidas cautelares, muitas vezes por não vislumbrar como poderiam ser cumpridas (por exemplo, a monitoração eletrônica, pela falta de tornozeleiras eletrônicas), como demonstrou a pesquisa realizada pelo Cesec . Não basta, portanto, mudar a lei, os operadores do direito, nesse caso, praticamente ignoraram as alterações, mantendo-se fiéis a uma cultura de antecipar a pena, condenando as pessoas antes da hora até que, eventualmente, se provem inocentes.   

As audiências de custódia representam outra medida voltada à tentativa de diminuir a quantidade de presos provisórios que, curiosamente, não foram implementadas pela lei, mas pelo próprio Judiciário, a partir de um esforço conjunto do Conselho Nacional de Justiça e do Ministério da Justiça, entre outras entidades.

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil em 1992, determina que toda pessoa detida deve ser conduzida sem demora à presença de um juiz. Pela lei processual brasileira, o juiz deve apreciar a prisão em flagrante no prazo máximo de 24 horas, mas isso não significa que haja encontro presencial entre o juiz e o preso, o que acaba ocorrendo em uma fase bem mais avançada do processo criminal. As audiências começaram a ser realizadas no Brasil em 2015 para garantir que esse direito previsto na Convenção fosse observado, acreditando-se que, o encontro torne mais efetivo o controle judicial da prisão, mantendo-se preso apenas quem realmente represente um risco ao andamento do processo ou à sociedade.

A proposta é que o réu possa, desde o início do processo, ser ouvido pelo juiz, assegurando-se o contato com o defensor logo após a prisão, em observância às garantias do contraditório e da ampla defesa. Durante a audiência, o juiz analisa a legalidade da prisão, avaliando a necessidade ou não de manter o réu preso, bem como eventuais ocorrências de tortura ou de maus-tratos.

Na Defensoria Pública do Rio de Janeiro, uma pesquisa coordenada por mim, apresentou o perfil dos réus atendidos durante um ano de realização das audiências de custódia. Os resultados demonstram o que já se sabe sobre o público do sistema prisional. São, em sua maioria, réus pretos/pardos (73,6%), jovens (83,5% entre 18 e 36 anos), com baixo grau de escolaridade (68,1% possuem apenas o ensino fundamental), que trabalham no mercado informal (apenas 11% dos que disseram trabalhar afirmaram poder comprovar o vínculo empregatício) e praticam crimes contra o patrimônio (66%) ou previstos na Lei de Drogas (22%).

Quando se comparam os dados com o período anterior ao da realização das audiências de custódia é possível perceber um aumento no índice de soltura, o que reforça a importância desse primeiro contato presencial com o juiz, que poderá melhor avaliar os critérios de manutenção da prisão, e com o defensor, que passa a conhecer, de imediato, o réu, traçando a melhor estratégia de defesa e amparando-o logo após seu ingresso no sistema penal.

Entretanto, o que se percebeu ao longo do tempo de monitoramento das audiências de custódia é que esse índice vai caindo, muito provavelmente porque essas medidas precisam estar acompanhadas de mudanças culturais e programas de conscientização dos operadores do direito envolvidos. A mudança foi implementada pela cúpula do Judiciário, mas a 1ª instância não entendeu o recado. Curiosamente, apenas 2,8% retornaram à audiência de custódia após terem comparecido pela primeira vez, ou seja, deixar os presos em flagrante responderem o processo em liberdade não significa necessariamente que eles voltarão a praticar crimes.

O altíssimo número de presos provisórios no sistema penitenciário brasileiro é um verdadeiro barril de pólvora, uma fábrica de criminosos e uma pandemia de injustiças. Ele traz para um sistema controlado pelo crime organizado pessoas que não deveriam estar lá, aumentando a reincidência criminal, fortalecendo as facções criminosas e criando o ambiente propício para massacres como os que estamos vivenciando. E o mais triste é que o motor disso não é a legislação brasileira. É uma cultura punitiva que se apossou do nosso Judiciário, esse poder que deveria justamente exercer o papel de promover justiça e fazer valer a Constituição, apesar de já ter se comprovado a importância de medidas como as audiências de custódia.

Carolina Haberé doutora em direito pela USP, diretora de pesquisa da Defensoria Pública do Rio de Janeiro e vice-presidente do Conselho Penitenciário do Rio de Janeiro.

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