Em um contexto típico de representação eleitoral, os governantes devem obter sua autoridade mediante o voto popular, conferido, periodicamente, a fim de garantir a responsividade das lideranças. Essa “cadeia de responsividade” visa a transportar as demandas sociais para as instituições formais que, idealmente, traduzirão os interesses da população em políticas públicas. O encadeamento descrito, no entanto, não funciona de forma exatamente linear por conta de motivos diversos, como a mudança das predileções dos legisladores, aspectos relacionados aos bastidores da política ou fatores que distorcem esse nexo em algum sentido – casos da influência de grupos ou da tecnocracia.
Neste artigo, trato de uma das faces da sub-representação política: o desalinhamento das preferências entre representantes e representados. Para dar contornos empíricos ao assunto, selecionei dois bancos de dados: um relativo às opiniões dos legisladores – o Survey Legislativo Brasileiro (BLS, na sigla em inglês), da Universidade de Oxford – e outro relativo às opiniões da população em geral – o ESEB (Estudo Eleitoral Brasileiro) , da Unicamp. As perguntas selecionadas, configuradas como escalas de dez pontos, tocam temas atinentes à economia, com formulações estritamente semelhantes. Os maiores valores indicam posicionamentos à direita do espectro político. São elas:
1) Concorrência. A concorrência é uma coisa boa porque estimula as pessoas a trabalhar muito e a desenvolver novas ideias (10). A concorrência é uma coisa ruim porque desperta o que há de pior nas pessoas (1).
2) Iniciativa privada. Deveria haver mais participação do governo na indústria e no comércio (1). Deveria haver mais iniciativa privada na indústria e no comércio (10).
3) Riqueza. Só se pode ficar rico às custas dos outros (1). O crescimento da riqueza pode beneficiar a todos (10).
4) Trabalho. Nem sempre quem trabalha muito consegue uma vida melhor (1). No longo prazo, quem trabalha muito sempre vai ter uma vida melhor (10).
5) Liberalismo. Escala fatorial com agregação dos itens 1 a 4.
Em um exercício simples, ponderei a média das predileções das partes consideradas em todos os itens. Os resultados no gráfico 1 explicitam as distâncias ideológicas de governantes e governados no tocante aos aspectos mencionados, com os parlamentares tendo predileções mais liberais no que se refere a matérias econômicas do que os eleitores, mais intervencionistas.

No contexto nacional, cujo perfil dos parlamentares é constituído por homens, brancos e empresários com rendimentos muito superiores à média dos cidadãos comuns, outro exercício se faz importante: desagregar os dados da análise e verificar com quais estratos do eleitorado as predileções dos parlamentares se adequam. O gráfico 2 revela uma reta em ascensão, o que mostra uma maior congruência das preferências políticas à medida que subimos na pirâmide de renda. Ou seja, as predileções econômicas refletem os posicionamentos dos estratos mais afluentes da sociedade.

A vinculação programática com os anseios da população é importante para a performance e para a qualidade da democracia, ainda mais em contextos de consolidação do sistema democrático, dado que a representação aumenta as percepções de legitimidade do regime, contribuindo para a sua durabilidade. Embora a congruência política não seja uma garantia da homologação dos desejos dos eleitores, ela certamente contribui para a sedimentação desses laços. Ou, pelo menos, ilumina a disparidade do jogo político em cenários de desigualdade.
Thiago Moreira da Silvaé doutor em ciência política pelo Ipol-UnB e atualmente é pós-doutorando no Iesp-Uerj.

Este texto é parte de um projeto de parceria do Nexo com núcleos e institutos acadêmicos que vão analisar semanalmente os seguintes temas durante a campanha eleitoral: a eleição parlamentar, a agenda urbana e social e o comportamento dos eleitores na internet.
O Iesp (Instituto de Estudos Sociais e Políticos) da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) publica às sextas-feiras análises sobre a eleição parlamentar.