Felicidade? Não, obrigado!

Ensaio

Felicidade? Não, obrigado!
Foto: Dado Ruvic/Reuters

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Slavoj Žižek


03 de abril de 2018

O escândalo do uso de dados de milhões de pessoas pela Cambridge Analytica representa um desdobramento assustador mas previsível da indústria da felicidade

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Se há uma figura que se destaca como o herói de nosso tempo, essa figura é a de Christopher Wylie, um canadense gay e vegano que, aos 24 anos de idade, bolou uma ideia que levou à fundação da Cambridge Analytica, uma empresa de análise de dados que veio a desempenhar um papel central na campanha “Vote Leave” pela saída do Reino Unido da União Europeia no referendo britânico de 2016. Mais tarde, ela se tornaria uma peça-chave nas operações digitais durante a campanha de eleição de Donald Trump, elaborando a ferramenta de guerra psicológica de Steve Bannon. O plano de Wylie era invadir o Facebook para colher os dados de milhões de pessoas nos EUA e usar essas informações privadas e pessoais para traçar perfis psicológicos e políticos sofisticados a fim de direcionar anúncios políticos especificamente projetados para operar em cima da constituição psicológica particular de cada um. A certa altura, o próprio Wylie se mostrou genuinamente espantado : “É insano. A empresa traçou perfis psicológicos de 230 milhões de americanos. E agora querem trabalhar com o Pentágono? É tipo Nixon elevado à enésima potência!”.

A manipulação fria e a dedicação ao amor e ao bem-estar humanos são dois lados de uma mesma moeda

O que faz essa história toda ser tão fascinante é que ela combina elementos que geralmente consideramos serem opostos. O alt-right [direita alternativa] dos EUA se apresenta como sendo um movimento que contempla as preocupações das pessoas brancas comuns, muito trabalhadoras e profundamente religiosas, que defendem valores tradicionais simples e abominam sujeitos excêntricos e corrompidos tais como homossexuais e veganos, mas também nerds do mundo digital – e agora descobrimos que seus triunfos eleitorais foram arquitetados e orquestrados precisamente por uma figura que representa tudo isso a que eles se opõem… Essa constatação tem muito mais do que mero valor anedótico: ela assinala claramente a vacuidade do populismo do alt-right que precisa depender dos mais novos avanços tecnológicos para manter seu apelo popular caipira. De quebra, ainda desfaz a ilusão de que ser um nerd de computador marginalizado automaticamente representa uma posição progressista de oposição ao sistema.

Já num nível mais básico, um olhar mais detido ao contexto do Cambridge Analytica deixa claro como manipulação fria e dedicação ao amor e ao bem-estar humanos são dois lados de uma mesma moeda. No artigo “ The New Military-Industrial Complex of Big Data Psy-Ops ” [O novo complexo militar-industrial de operações psicológicas de big data”] publicado na The New York Review of Books, Tamsin Shaw discute “o papel que as empresas privadas desempenham no desenvolvimento e no emprego de tecnologias comportamentais financiadas pelo governo”. O caso exemplar desse tipo de empresa é, evidentemente, o Cambridge Analytica.

“Há dois jovens psicólogos no cerne da história do Cambridge Analytica. Um deles é Michal Kosinski, que desenvolveu em conjunto com um colega da Universidade de Cambridge, David Stillwell, um aplicativo com o objetivo de medir traços de personalidade através da análise das ‘curtidas’ feitas no Facebook. Em seguida, a ferramenta foi utilizada em uma colaboração com o World Well-Being Project [Projeto de Bem-Estar Humano], um grupo no Centro de Psicologia Positiva da Universidade de Pensilvânia especializado em utilizar big data para medir índices de saúde e felicidade com o intuito de melhorar o bem-estar humano. O outro psicólogo é Aleksandr Kogan, que também trabalhou no campo da psicologia positiva e escreveu artigos sobre felicidade, gentileza e amor (de acordo com seu currículo, um de seus primeiros artigos chama-se ‘Down the Rabbit Hole: A Unified Theory of Love’). Ele coordenava o Laboratório de Prosocialidade e Bem-Estar sob os auspícios do Instituto de Bem-Estar da Universidade de Cambridge.”

O que deve despertar nossa atenção aqui é o “bizarro entrecruzamento de temas de pesquisa como ‘amor’ e ‘gentileza’, com interesses de defesa e inteligência”: por que esse tipo de pesquisa desperta tanta atenção das agências britânicas e estadunidenses de inteligência e das indústrias bélicas, com a sinistra Darpa (a Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa do governo dos EUA) sempre à espreita nos bastidores? O pesquisador que personifica essa intersecção é Martin Seligman. Em 1998, ele “fundou o movimento de psicologia positiva, dedicado ao estudo de traços e hábitos psicológicos que promovem felicidade e bem-estar autênticos, alavancando toda uma imensa indústria de populares livros de autoajuda. Ao mesmo tempo, sua obra atraiu o interesse e o financiamento dos militares como uma parte central de sua iniciativa de resiliência de soldados.”

Essa interseção não é portanto imposta de fora, por manipuladores políticos “malvados”, sobre as ciências comportamentais, mas sim está implicada em sua própria orientação imanente: “o objetivo desses programas não é simplesmente o de analisar nossos estados mentais subjetivos, mas sim de descobrir os meios pelos quais seria possível administrar ‘empurrãozinhos’ para nos conduzir na direção de nosso verdadeiro bem-estar, conforme os psicólogos positivos o compreendem, o que inclui atributos tais como resiliência e otimismo.” O problema, evidentemente, é que esses “empurrãozinhos” não afetam os indivíduos no sentido de fazer com que eles superem suas “irracionalidades” verificadas pela pesquisa científica.

 Muito pelo contrário, as ciências comportamentais contemporâneas  “buscam explorar nossas irracionalidades ao invés de trabalhar no sentido de sua superação. Uma ciência orientada para o desenvolvimento de tecnologias comportamentais está fadada a nos enxergar de maneira estreita como sujeitos manipuláveis ao invés de agentes racionais. Se é verdade que essas tecnologias estão se tornando o núcleo das ciber-operações do exército e da inteligência dos EUA, teremos que nos empenhar ainda mais para evitar que essas tendências afetem a vida cotidiana de nossa sociedade democrática.”

Após a eclosão do escândalo da Cambridge Analytica, a grande mídia liberal discutiu exaustivamente todos esses acontecimentos e tendências. E a imagem geral que emerge desse quadro, junto com o que já sabemos sobre os últimos desenvolvimentos em biogenética nesse sentido (tentativas de conectar o cérebro humano diretamente ao computador e à internet etc.), fornece uma imagem certeira e assustadora das novas formas de controle social que fazem o velho “totalitarismo” do século 20 parecer uma máquina um tanto primitiva e desajeitada.

Não é a China que deve nos causar espanto. Afinal, aceitamos uma regulação tão insidiosa quanto a chinesa e ainda por cima acreditamos que nossa plena liberdade permanece intacta

Para compreender o escopo integral desse novo paradigma de controle, é preciso ir além da constatação do elo entre corporações privadas e partidos políticos (como é o caso da Cambridge Analytica), e atentar para a interpenetração entre grandes corporações de processamento de dados, como o Google e o Facebook, e agências estatais de segurança. [Julian] Assange estava correto em seu fundamental e estranhamente ignorado livro sobre o Google, “Quando o Google encontrou o WikiLeaks”: para compreender como nossas vidas são reguladas hoje e como essa regulação nos é experimentada justamente como liberdade, precisamos atentar para a relação obscura entre corporações privadas que controlam nossos recursos comuns e agências estatais secretas. Não é a China que deve nos causar espanto, mas sim a nossa própria situação. Afinal, aceitamos uma regulação tão insidiosa quanto a chinesa e ainda por cima acreditamos que nossa plena liberdade permanece intacta e que as mídias sociais são apenas ferramentas que nos ajudam a realizar nossos objetivos (ao passo que na China as pessoas têm plena consciência de que estão sendo reguladas). O maior feito do novo complexo cognitivo-militar foi dispensar a opressão direta e explícita: os indivíduos são muito mais bem controlados e são muito mais suscetíveis a um “empurrãozinho” na direção desejada quando eles continuam a experimentar a si mesmos como agentes livres e autônomos que têm pleno controle sobre suas próprias vidas…

Mas vale dar ainda outro passo adiante aqui. A crítica predominante opera no sentido da desmistificação. Isto é: por baixo da aparentemente inocente pesquisa sobre felicidade e bem-estar, revela-se um enorme complexo obscuro de controle social e manipulação exercido pelas forças conjuntas de corporações privadas e agências estatais. Mas o que urgentemente falta é o movimento no sentido oposto: em vez de apenas indagar que tipo de conteúdo obscuro estaria escondido por trás da forma de pesquisa científica sobre a felicidade, devemos atentar para essa própria forma. Seria de fato tão inocente assim a temática da pesquisa científica sobre o bem-estar e a felicidade humanas (ao menos na forma pela qual esse tipo de pesquisa é levada a cabo hoje)? Ou não estaria ela por si só já permeada pela postura de controle e manipulação? E se as ciências não estiverem simplesmente sendo usadas de maneira indevida, e se elas encontram aqui precisamente seu uso adequado? É preciso problematizar o recente surgimento e ascensão de uma nova disciplina, os chamados “estudos de felicidade”. Como explicar que justamente na nossa era de hedonismo espiritualizado, em que o objetivo de nossas vidas é diretamente definido como sendo a felicidade, o número de casos de ansiedade e depressão esteja explodindo? É o enigma dessa autossabotagem da felicidade e do prazer que faz da mensagem de [Sigmund] Freud mais atual do que nunca.

O maior feito do novo complexo cognitivo-militar foi dispensar a opressão direta e explícita

Como geralmente costuma ocorrer, foi um país de terceiro mundo que por acaso acabou soletrando as consequências sociopolíticas absurdas dessa noção de felicidade. Duas décadas atrás, o reino do Butão decidiu priorizar a Felicidade Interna Bruta (FIB) em vez do Produto Interno Bruto (PIB). A ideia partiu do antigo rei Jigme Singye Wangchuck, que buscava conduzir o Butão ao mundo moderno sem deixar de preservar sua identidade singular. Diante das crescentes pressões da globalização e do materialismo, e com o país às vésperas do primeiro processo eleitoral de sua história, o imensamente popular novo rei, formado na Universidade de Oxford, Jigme Khesar Namgyel Wangchuck, encomendou que um órgão do governo calculasse o quão felizes eram de fato os 670 mil habitantes do reino. As autoridades responderam que já haviam conduzido uma pesquisa com cerca de 1.000 pessoas a partir da qual extraíram uma lista de parâmetros para a felicidade (semelhante ao índice de desenvolvimento medido pelas Nações Unidas). Os principais pontos de preocupação foram identificados como bem-estar psicológico, saúde, educação, boa governança, padrão de vida, vitalidade da comunidade e diversidade ecológica… Se isso não é imperialismo cultural, não sei o que o seria.

Aqui, devemos arriscar dar ainda outro passo adiante e nos indagar a respeito do lado oculto da própria noção de felicidade. Até que ponto, exatamente, pode-se dizer que um povo está feliz? Em um país como a Tchecoslováquia do final dos anos 1970, início dos 1980, as pessoas de certa forma efetivamente estavam felizes. Três condições fundamentais da felicidade foram cumpridas lá.

Em primeiro lugar, suas necessidades materiais estavam basicamente satisfeitas – não demasiadamente satisfeitas, pois o excesso de consumo pode por si só gerar infelicidade. É bom experimentar uma breve escassez de alguns bens no mercado de tempos em tempos (sem café por um ou dois dias, depois sem carne, depois sem aparelhos de televisão): esses breves períodos de escassez funcionavam como exceções que faziam com que as pessoas nunca esquecessem de sempre estarem gratas de terem acesso a esses bens – se tudo está disponível a toda hora, as pessoas assumem que essa disponibilidade é um fato evidente da vida e deixam de valorizar como são sortudas. A vida pôde portanto prosseguir de maneira regular e previsível, sem grandes esforços ou choques.

Uma segunda característica, extremamente importante: existia o Outro (o Partido) para se culpado por tudo que dava errado, de forma que as pessoas não tinham que se sentir efetivamente responsáveis – se houvesse uma escassez temporária de determinados produtos, ainda que os danos tivessem efetivamente sido provocados por alguma força da natureza, era a culpa “deles”.

Por fim, havia um Outro lugar (o ocidente consumista) sobre o qual era permitido sonhar e até mesmo visitar às vezes – esse lugar estava exatamente à distância certa, nem longe demais, nem perto demais. Esse equilíbrio frágil foi perturbado. Pelo quê? Pelo desejo, justamente. O desejo foi a força que impeliu as pessoas a irem além – e caírem em um sistema em que a grande maioria está definitivamente menos feliz…

A felicidade é portanto por si só (em seu próprio conceito, como Hegel teria dito) confusa, indeterminada, inconsistente – lembremos a proverbial resposta de um imigrante alemão nos EUA que, quando indagado se ele estava feliz, respondeu: “Sim, sim, estou muito feliz, a ber glücklich bin ich nicht [mas não sou sortudo, em alemão]…” Trata-se de uma categoria pagã: para os pagãos, o objetivo da vida é viver uma vida feliz (a ideia de viver “felizes para sempre” já é uma versão cristianizada do paganismo), e a própria experiência religiosa ou a atividade política é considerada a forma mais alta de felicidade (vide Aristóteles) – não é à toa que o próprio Dalai Lama está tendo tanto sucesso recentemente pregando ao redor do mundo o evangelho da felicidade, e não é de se espantar que suas ações têm tido maior repercussão justamente nos EUA, o grande império da (busca por) felicidade… A felicidade depende da inabilidade ou despreparo do sujeito para confrontar plenamente as consequências de seu desejo. Em nossas vidas cotidianas, nós (fingimos) desejar coisas que na verdade não desejamos, de forma que, ao fim e ao cabo, a pior coisa que pode acontecer para nós é conseguir aquilo que “oficialmente” desejamos. A felicidade é portanto inerentemente hipócrita: ela é a felicidade de sonhar com coisas que na verdade não queremos.

Não podemos dizer que encontramos um gesto semelhante em boa parte das políticas de esquerda? Quando um partido esquerdista perde, por pouco, as eleições e acaba não tomando o poder, é quase possível sentir um suspiro escondido de alívio: “ainda bem que perdemos, imagine só o problemão que teríamos que enfrentar se tivéssemos ganho…” No Reino Unido, muitos esquerdistas admitem, reservadamente, que a quase-vitória do Partido Trabalhista nas últimas eleições foi a melhor coisa que podia ter acontecido, muito melhor do que a insegurança do que poderia ter ocorrido se o governo do Labour tivesse tentado implementar seu programa. O mesmo vale para a perspectiva da eventual vitória de Bernie Sanders: quais seriam suas chances contra a artilharia do grande capital?

A verdade e a felicidade não vão bem juntas – a verdade dói, ela traz instabilidade, ela estraga o andamento tranquilo das nossas vidas cotidianas

A grande mãe desse tipo de gesto foi a intervenção soviética na Tchecoslováquia, que esmagou a Primavera de Praga e sua esperança de socialismo democrático. Imaginemos a situação do país sem a intervenção soviética: muito cedo, o governo “reformista” seria obrigado a confrontar o fato de que não havia real possibilidade de socialismo democrático naquele momento histórico, de forma que teria que se optar entre reafirmar o controle do partido (isto é, estabelecendo um limite claro às liberdades) ou permitir que a Tchecoslováquia se tornasse um dos países capitalistas liberal-democráticos ocidentais. De certa forma, pode se dizer que a intervenção soviética salvou a Primavera de Praga – salvou a Primavera de Praga como um sonho, como uma esperança de que sem a intervenção uma forma nova de socialismo democrático talvez pudesse ter emergido…

E não poderíamos dizer que algo semelhante ocorreu na Grécia quando o governo do Syriza organizou o referendo contra a pressão de Bruxelas para se aceitar as políticas de austeridade? Muitas fontes internas confirmam que o governo estava secretamente torcendo para perder o referendo, pois assim ele seria forçado a se retirar deixando a cargo dos outros realizar o trabalho sujo da austeridade. Como o Syriza acabou ganhando, essa tarefa coube a eles, e o resultado foi a autodestruição da esquerda radical na Grécia… Sem sombra de dúvida, o Syriza teria sido muito mais feliz se tivesse perdido o referendo.

Então, para retomar nosso ponto de partida: não somos apenas controlados e manipulados, pessoas “felizes” secretamente e hipocritamente inclusive demandam ser manipuladas pelo seu próprio bem. A verdade e a felicidade não vão bem juntas – a verdade dói, ela traz instabilidade, ela estraga o andamento tranquilo das nossas vidas cotidianas. A escolha é nossa: queremos ser alegremente manipulados ou aceitaremos nos expor aos riscos da autêntica criatividade?

Slavoj Žižek nasceu em 1949 em Liubliana, Eslovênia. É filósofo, psicanalista e professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana. Preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é diretor internacional do Instituto de Humanidades da Universidade Birkbeck de Londres. É autor de “O Sujeito Incômodo”, pela editora Boitempo.

Tradução de Artur Renzo

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