O Plano Diretor de São Paulo está ameaçado

Ensaio

O Plano Diretor de São Paulo está ameaçado
Foto: SMDU, Prefeitura de São Paulo/Divulgação

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Carlos Leite, Paulo Saldiva e Luiz Carlos Bresser-Pereira


26 de maio de 2018

Proposta de revisão do zoneamento na capital paulista feita pela atual gestão representa retrocesso nas políticas públicas urbanas

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O Plano Diretor Estratégico de São Paulo, aprovado em 2014, recebeu reconhecimento internacional após o prêmio outorgado pela agência ONU-Habitat em 2017. O prêmio de práticas inovadoras da Nova Agenda Urbana destaca o marco regulatório urbano indutor de uma cidade mais humana, equilibrada social, ambiental e economicamente, priorizando a mobilidade sustentável e promovendo o uso do território coletivo e uma cidade mais inclusiva e saudável.

De fato, ao regular o uso do solo promovendo o adensamento urbano junto à rede de transportes públicos, aproximando pessoas e transporte, moradia e trabalho, ao induzir uma cidade mais compacta e de uso misto, ao priorizar o crescimento urbano em áreas com infraestrutura de suporte e ao enfatizar o uso dos instrumentos urbanísticos que promovem a função social da cidade, aponta-se para um novo paradigma de desenvolvimento urbano.

A implementação dos instrumentos urbanos indutores da transformação planejada é a condição do  plano se concretizar. Por exemplo, o coeficiente de aproveitamento básico único em toda a cidade e os fatores de planejamento induzem o crescimento nas áreas planejadas, orientando o mercado imobiliário onde atuar com maior ênfase e onde atuar com maiores limitações de altura ou adensamento, preservando o meio ambiente existente e a qualidade de vida dos moradores. A demarcação de zonas especiais de interesse social, o parcelamento, edificação ou uso compulsório e a cota de solidariedade induzem à fundamental promoção de habitação de interesse social numa cidade com déficit habitacional de quase 500 mil unidades. A outorga onerosa do direito de construir é o instrumento de mobilização e captura da valorização do solo, importante para recuperar parte da valorização decorrente dos investimentos públicos realizados na cidade e destiná-lo ao Fundurb (Fundo de Desenvolvimento Urbano), em ações principalmente em mobilidade e habitação.

O Plano Diretor tem horizonte de implantação de 16 anos. Em planejamento urbano não há solução mágica e sim continuidade de políticas públicas urbanas, planos e ações de curto, médio e longo prazos.

Nesse contexto, causa estranhamento a chegada de proposta de revisão do zoneamento por parte da Prefeitura. O “zoneamento” é a Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo, parte integrante do marco regulatório urbanístico da cidade e decorrente do Plano Diretor. Faz parte do conjunto indissociável da política pública urbana, tendo sido aprovado logo em 2016.

Calcada na tese de atender à “cidade real”, a proposta da atual gestão apresenta um conjunto de medidas que impactam as estratégias centrais do marco regulatório vigente. O desconto de 30% no valor da Outorga Onerosa gera significativa redução de recursos ao Fundurb. A liberação de construção de mais vagas de garagem para automóveis gera o desestímulo à mobilidade urbana sustentável. A flexibilização da altura dos edifícios nos miolos de bairros e da cota parte máxima são contrárias à essência do plano. Há diminuições dos mecanismos de produção de habitação social em áreas infraestruturadas, da eficiência da quota ambiental, da destinação de áreas públicas e da indução dos eixos de adensamento.

No debate público ocorrido até o momento, a resistência à proposta é imensa. 167 entidades da sociedade civil publicaram carta aberta contra a proposta.

Apenas um segmento da sociedade a tem apoiado: o mercado imobiliário, com o argumento de que o marco regulatório impede o desenvolvimento imobiliário na “cidade real” e estaria levando o setor a construir em outras cidades vizinhas.

Ora, números recentes do mercado têm revelado o contrário, mostrando uma retomada dos lançamentos após três anos. Na verdade, apenas em São Paulo tem ocorrido a retomada e não nas cidades vizinhas ( 55,7% de aumento nos lançamentos de unidades residenciais em 2016 no comparativo anual com 2017). Incorporadoras inovadoras têm lançado produtos justamente nas regiões determinadas pelo Plano Diretor – como nos corredores Rebouças, Nove de Julho e junto à Radial Leste – e junto a diversas estações de metrô. 

Portanto, a tese parece se desfazer. Talvez seja então mais correto dizer que apenas alguns setores conservadores do mercado resistem à inovação urbana enquanto segmentos mais conectados às premissas do urbanismo contemporâneo têm aderido ao marco regulatório.

Na verdade, urge a percepção em nossa sociedade urbana de que o território é um bem coletivo e não uma coleção de propriedades privadas. Que o uso do território é de domínio público e, portanto, deve ser regrado por políticas públicas que o disciplinem. É assim em todas as cidades mais equilibradas e saudáveis do planeta, onde os cidadãos têm melhor qualidade de vida.

Há que superar a imensa resistência em nossas cidades na implementação dos instrumentos urbanísticos que regulam o uso do solo. São Paulo é a cidade que mais avançou e inovou em seu marco regulatório recente. É impertinente desidratá-lo. Não se deve, mais uma vez, acentuar a histórica distância neste país, entre o discurso – a lei – e a prática, assim como a nefasta descontinuidade das políticas públicas.

Carlos Leiteé urbanista, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie e pesquisador convidado no Instituto de Estudos Avançados da USP.

Paulo Saldivaé médico patologista, professor titular da Faculdade de Medicina da USP e diretor do Instituto de Estudos Avançados da USP.

Luiz Carlos Bresser-Pereiraé economista, professor emérito da FGV; foi ministro da Fazenda, da Administração e Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia.

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