Possíveis respostas à pergunta: como uma democracia falha?

Ensaio

Possíveis respostas à pergunta: como uma democracia falha?
Foto: Amr Dalsh/Reuters

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Aziz Huq, Filippo Lancieri e Tom Ginsburg


18 de dezembro de 2018

A ameaça à democracia pode vir da esquerda ou da direita. É o que mostra a evidência internacional dos últimos 100 anos

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Como uma democracia falha? Vários brasileiros estão se perguntando isso neste momento. A ameaça à democracia ao redor do mundo é real. Na última década, várias democracias aparentemente estáveis e robustas deixaram de o ser. Esses Estados podem ser encontrados desde a Europa Oriental até a América Latina. Ganhos democráticos antes previstos na Rússia e na China não se realizaram. A Venezuela tornou-se uma ditadura. Nesse ínterim, a esperada “quarta onda” democrática da Primavera Árabe se dissipou em guerras civis e autoritarismo.

Em um novo livro, “How to Save a Constitutional Democracy”, nós analisamos retrocessos democráticos ao redor do mundo ao longo do último século – ajudando a colocar em perspectiva a atual situação brasileira. A análise comparada revela dois padrões. Primeiro, a ameaça à democracia pode vir da esquerda ou da direita. Ambos os lados podem perder seu compromisso com a manutenção da competição democrática. Segundo, existem duas formas distintas de retrocesso – rápido e lento.

Durante grande parte do século 20, falhas democráticas envolviam um golpe (como o Brasil em 1964), uma revolução, ou o abuso de poderes de emergência. Com base em índices internacionais a pesquisa identificou 40 golpes ao longo dos últimos 100 anos. Porém, essas formas de colapso democrático são cada vez menos usadas. Golpes hoje são raros e, como a revista The Economist recentemente indicou, não há razões estruturais para se pensar que um golpe é provável no Brasil – não obstante a nostalgia de Jair Bolsonaro por governos militares.

Mais comuns são processos mais lentos em que a democracia falha aos poucos. A pesquisa identificou ao redor de 100 casos de erosão democrática. Estes tipicamente começam com a eleição de um líder ou partido populista, que toma o poder em uma campanha contra elites ou contra a globalização. Uma vez eleitos pelo voto, estes líderes usam o direito e outros instrumentos constitucionais para consolidarem o poder político. Eles transformam o direito em arma para esvaziar a democracia.

Esse processo lento de retrocesso democrático é muito difícil de ser combatido. Em parte, isso se dá pois ele ocorre por meios legais e tecnocráticos. Em parte porque a sua evolução é gradual. Cada passo parece pequeno. Coletivamente, eles causam um grande dano. A erosão carece de claras crises, como uma declaração de estado de emergência. Isso dificulta a mobilização de uma oposição pró-democracia. Como o sapo em água morna, a oposição morre aos poucos.

Um eventual processo de erosão democrática no Brasil, se ocorrer (e isso não é certo), provavelmente será lento e por meio de um acúmulo de mudanças legais pontuais.

A experiência comparada indica que autocratas-em-formação usualmente seguem cinco passos. Primeiro, eles acreditam ser crucial controlar a narrativa pública, usualmente por meio do ataque e intimidação da imprensa. Processos por difamação – Vladimir Putin notadamente recriminalizou a difamação – ou o aumento no número de outros processos legais e/ou a criação de novas regulações dos organismos de mídia buscam os mesmos fins. Os brasileiros fazem bem em ver com maus olhos tentativas de controle direto da mídia ou outras restrições indiretas de suas atividades, tais como limitar o financiamento público somente a veículos alinhados ao governo.

Segundo, tentativas de criar ou enfatizar demasiadamente ameaças à segurança nacional geram uma sensação de crise, permitindo a autocratas difamar críticos como fracos ou traidores. Existem outros movimentos retóricos típicos: líderes que querem enfraquecer instituições democráticas geralmente afirmam que elas representam uma elite insulada e autocentrada. De forma a impedir isso, deve-se resguardar o Congresso e outros órgãos do Poder Legislativo, essenciais para democracias representativas. A nova lei antiterrorismo brasileira não deve ser usada para criminalizar movimentos sociais e políticos por conta de suas diferentes visões. Intervenções militares tais como a que ocorre hoje no estado do Rio de Janeiro parecem de difícil justificativa, em particular após a eleição de novos governadores.

Terceiro, um Judiciário independente e outros contrapesos como supervisão legislativa das atividades do Executivo podem ser importantes barreiras contra a erosão. Por isso, autocratas tentam entupir as cortes com aliados ou intimidam juízes a se alinharem ao seu programa. Ataques às cortes são claros sinais de retrocesso democrático. Os brasileiros fazem bem em se preocupar caso vejam tentativas de forçar mudanças na composição das cortes superiores, tais como a diminuição de tetos para aposentadoria, o aumento no número de ministros ou tentativas de subjugar as cortes à “vontade do povo”. Nesse momento, é importante que tradições históricas na nomeação de juízes e promotores/procuradores sejam mantidas.

Quarto, quando a burocracia estatal insiste em manter o Estado democrático de direito, ela também é comumente forçada a submeter-se. O enfraquecimento da estabilidade de funcionários públicos é uma forma pouco discutida sobre como se pode fazer isso. Governos que deixam de contratar funcionários com base em mérito e passam a fazê-lo majoritariamente por sua visão política não apenas interrompem uma possível oposição ao poder Executivo como também permitem ao “autocrata-em-potencial” direcionar o todo o aparato investigativo e persecutório do Estado contra inimigos políticos. Especificamente em relação ao contexto brasileiro, é importante a salvaguarda não apenas dos quadros técnicos como também do Ministério Público, que tem desempenhado um papel chave na luta contra a corrupção.

Finalmente, “autocratas-em-potencial” tentam manipular a competição política, mesmo se alguma versão de processos eleitorais é mantida para permitir aos líderes cultivar uma aparência de legitimidade. A modificação ou extensão de limites à reeleição é um movimento comum. Também o é mudar regras eleitorais de forma a solidificar maiorias temporárias. Para impedir isso, é importante que reformas políticas sejam passadas com amplo suporte, não por margens apertadas.

Espera-se que nada do exposto acima aconteça no Brasil. Acima de tudo, espera-se que a recente eleição ajude o país a superar a grande desconfiança no sistema político que minou a democracia e parte da economia brasileira nos últimos anos. A história ensina que nada é melhor do que um processo eleitoral livre e justo para colocar um país de volta nos trilhos. Não obstante, o preço da liberdade é a eterna vigilância.

Tom Ginsburg e Aziz Huq são professores de direito constitucional e de direito internacional da Escola de Direito da Universidade de Chicago. São autores do recém-lançado livro “How to Save a Constitutional Democracy” (University of Chicago Press, 2018), que analisa processos de retrocesso democrático ao redor do mundo ao longo do último século e o que as instituições podem fazer para impedi-los.

Filippo Lancieri é estudante de doutorado na Universidade de Chicago.

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