Wanderley Guilherme dos Santos: modelo de intelectual público

Ensaio

Wanderley Guilherme dos Santos: modelo de intelectual público
Foto: Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação/Reprodução

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Christian Edward Cyril Lynch e Paulo Henrique Cassimiro


29 de outubro de 2019

Professor pioneiro da ciência política no Brasil formou gerações de cientistas sociais e, por meio de sua pesquisa, cunhou conceitos que são essenciais à compreensão de nossos tempos

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Ao relembrar a obra e o percurso intelectual do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos – morto no dia 25 de outubro no Rio de Janeiro, vítima de uma pneumonia – a imprensa tem por costume referir-se à sua “profecia” sobre o golpe de 1964, “Quem dará o Golpe no Brasil?”, publicada em 1962. O “panfleto” (como Wanderley o chamava), que integrou a coleção Cadernos do Povo Brasileiro, editada pelo Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), vai muito além da intuição profética atribuída ao autor. O texto é um exemplo notável de análise da relação entre as opções dos atores políticos e a crescente impossibilidade de uma saída da crise por via institucional. O golpe, na leitura de Wanderley, seria resultado da incapacidade das incipientes e frágeis instituições democráticas de 1946 em encontrar uma solução para a contradição cada vez maior entre setores das elites dominantes e a ampliação das demandas populares por cidadania. O golpe levaria Wanderley e os demais colegas à aposentadoria compulsória com o imediato fechamento do Iseb pelo regime militar.

Após dois anos de dificuldades, Wanderley passou a integrar o projeto de Cândido Mendes para recriar uma versão feita à imagem e semelhança do extinto Iseb, incorporando, porém, o instrumental científico-metodológico das ciências sociais norte-americanas. Destinado a formar intelectuais públicos – conforme a antiga tradição – que dali por diante legitimassem cientificamente sua atuação, nasceu o antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, o Iuperj. Com o apoio da Fundação Ford para a criação de pesquisas científicas e programas de pós-graduação em ciências sociais no Brasil, Wanderley partiria em 1967 para Stanford. Quatro anos depois, ele retornaria para assumir a direção do Iuperj e dar início a seu mais importante legado intelectual e institucional: formar diversas gerações de cientistas sociais e participar das mais importantes iniciativas de ampliação e consolidação de pesquisa e pós-graduação no Brasil, como a criação da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), fundada em 1977 numa articulação liderada por ele e Fernando Henrique Cardoso.

A obra de Wanderley, espalhada em cerca de 40 livros e dezenas de outros artigos, percorre uma diversidade de temas e problemas centrais para a construção da ciência política brasileira. Ainda no período do Iseb, Wanderley iniciaria sua célebre pesquisa sobre o pensamento político brasileiro – “A imaginação política brasileira” –, mapeando as diferentes tradições e interpretações sobre a realidade nacional e suas concepções de Estado, de desenvolvimento, de instituições políticas e outros temas centrais de nossa formação. Nesses estudos, voltados inicialmente à compreensão das origens do pensamento nacionalista, já se anunciava o problema central de sua obra: a interpretação da acidentada trajetória brasileira rumo à construção de uma sociedade democrática.

Ele conseguiu a proeza de, ao mesmo tempo, ser um dos últimos “intérpretes do Brasil” de cunho ensaístico e o primeiro de seus cientistas políticos, no sentido moderno da expressão.

Wanderley ousou pensar alto, dialogando diretamente, em seus textos, com os grandes expoentes da ciência social estrangeira, de modo científico e crítico, sem qualquer complexo de inferioridade – coisa rara na academia latino-americana. Nesse sentido, uma das maiores façanhas de Wanderley foi conseguir equilibrar a análise científica, descritiva, com a defesa da democracia, normativa. Convicto de que não era possível democracia sem Estado de direito, ele era um advogado consistente do liberalismo político identificado com o sistema representativo e partidário, condenando modelos de democracia plebiscitária. Por outro lado, coerente com suas convicções progressistas, Wanderley acreditava que a democracia precisava ser alargada e que só um regime de corte social-democrata poderia reduzir as desigualdades sociais que limitavam a sua potência. O governo tinha nisso um papel fundamental, e por isso ele sempre se manteve fiel a uma orientação nacionalista que rejeitava, como elitista, a versão hegemônica do liberalismo, que pregava o Estado mínimo.

O tema da democracia e das condições de sua existência levou Wanderley a uma busca por novos instrumentos teóricos e empíricos. Muitos de seus textos tornaram-se centrais para a interpretação da experiência democrática. Em 1979, em “Cidadania e Justiça”, explorou a relação complexa entre a conquista dos direitos sociais e o papel central do Estado na construção de um modelo de “cidadania regulada”. Poucos anos depois, em “1964: anatomia da crise” (republicada em versão revista e aumentada com o título “O cálculo do conflito”), Wanderley inventou o conceito de paralisia decisória para entender como o sistema político da República de 1946 tornou-se incapaz de responder a um cenário crescente de fragmentação e radicalização política.

No contexto de expansão da ideia neoliberal do mercado como centro da vida social, Wanderley publicou “Paradoxos do Liberalismo” (1988), um esforço teórico para entender a interação entre política, Estado e mercado na construção da democracia. Quatro anos depois, em “Razões da Desordem”, ele estudava a persistente incapacidade brasileira em conciliar estabilidade política, consolidação democrática e ampliação da cidadania. O mesmo tema reaparece em 2006, em “O ex-Leviatã brasileiro: do voto disperso ao clientelismo concentrado”, dessa vez focando sua análise no processo de transformação das capacidades de ação do Estado brasileiro e em desmentir de forma cabal as teses que associavam o tamanho do Estado ao seu caráter supostamente patrimonial. Em seu último livro, “A democracia impedida: o Brasil no século 21” (2017), Wanderley analisou as razões da instabilidade política e as circunstâncias que levaram à cassação do mandato de Dilma Rousseff, inventando desta vez o conceito de “golpe parlamentar”, que, a exemplo dos outros, tornou-se moeda corrente não só na academia, como também na opinião pública. Nesse sentido, ele conseguiu a proeza de, ao mesmo tempo, ser um dos últimos “intérpretes do Brasil” de cunho ensaístico e o primeiro de seus cientistas políticos, no sentido moderno da expressão.

A carreira intelectual de Wanderley Guilherme foi, assim, marcada por uma rebeldia contra as ideias prontas, pelo rigor científico e pelo compromisso com a democracia. Incomodavam-no profundamente as teses e interpretações acadêmicas consolidadas, tornadas lugares-comuns, e a incapacidade crescente das ciências sociais em compreender as mudanças contemporâneas. Seu gênio nunca lhe permitiu acomodar-se, obrigando-o a se posicionar sempre na vanguarda, desenvolvendo teorias que entendessem a totalidade do processo social e que lhe permitissem, posteriormente, aplicações mais tópicas para fenômenos mais localizados.

Seu último curso ministrado no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, denominado “Introdução ao século 21”, buscava entender a crise da democracia contemporânea a partir do que ele chamou de “fim da sociedade industrial”, que daria origem a uma “sociedade intransitiva”, novo conceito por ele cunhado para descrever o mundo social do futuro. Ele examinava uma literatura que explorava não só a ciência política, mas campos e temas diversos, como a engenharia robótica, a demografia, o estudo das transformações históricas nos modos de produção, a informática e a sociedade da informação.

Wanderley, que vivia intensamente sua atividade intelectual, lecionou até a véspera de sua morte. Ele deixou três filhos, três netos, dezenas de amigos e centenas de alunos. Embora também tenha deixado a ciência política brasileira sem seu maior e mais importante desbravador, legou-nos, em compensação, o exemplo de um intelectual que buscou como ninguém compreender as dificuldades teóricas e empíricas da democracia brasileira, sem nela jamais perder sua fé, mesmo em seus momentos mais sombrios. Exemplo a ser seguido pelas gerações atuais.

Christian Edward Cyril Lynchéprofessor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Paulo Henrique Cassimiroé p ós-doutor em ciência política da Universidade de São Paulo.

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