A escatologia de Olavo de Carvalho, guru do bolsonarismo

Ensaio

A escatologia de Olavo de Carvalho, guru do bolsonarismo
Foto: Facebook Olavo de Carvalho/Reprodução/

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Flávio Moura


26 de janeiro de 2019

Pensamento do escritor influente na direita brasileira é uma mistura exótica de erudição, paranoia, ressentimento e inconsequência

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Parte expressiva dos temas apresentados nos primeiros dias de governo Bolsonaro remonta a uma pessoa que não tem educação formal, não mora no Brasil e não ocupa cargo no governo. Os despautérios do chanceler Ernesto Araújo sobre “globalismo”, os delírios do ex-futuro-chefe do Enem sobre professores “esquerdistas e abortistas”, a pregação da ministra Damares Alves contra a “ideologia de gênero”, tudo isso repisa as mesmas obsessões do ideólogo Olavo de Carvalho. Ele não é apenas o guru de Bolsonaro e seus filhos, ou a figura por trás das indicações dos ministros da Educação e das Relações Exteriores, mas um sujeito que seduziu uma massa significativa de brasileiros com um discurso eficiente.

É fácil colher em seus escritos afirmações delirantes e revirar os olhos de indignação contra a enxurrada de preconceito e intolerância que emana dali. Mas não é simples entender como sua influência se espraiou de modo tão generalizado.

Seu pensamento é uma mistura exótica de erudição, paranoia, ressentimento e inconsequência.

Erudição porque se trata de um sujeito que leu bastante e tem grande habilidade retórica. Parte da influência que exerce sobre seus leitores tem a ver com o poder de persuasão de seus textos, que é forte e seria impossível sem clareza de expressão e contundência argumentativa. No fim dos anos 1990, seus alvos prediletos eram Marilena Chauí e os professores de filosofia da USP. A maneira como ele apresentava o pensamento desses intelectuais era sumária e enviesada, mas o que estava em jogo era a forma: seus ataques tinham humor e verve; já os textos de seus alvos eram cifrados e reféns de jargão.

Paranoia porque ele vê estratégia e intencionalidade em tudo. A ideia de que o Foro de São Paulo é uma conspiração da esquerda latino-americana “escondida pela mídia” vem dele. A crença que espalhou aos quatro ventos, de que a ocupação das universidades, escolas e redações é uma “estratégia gramsciana da esquerda” para dominação cultural, é outro fruto de sua lavra.

Ressentimento porque é evidente que desejou ser assimilado pelo establishment intelectual, que nunca o aceitou. Os ataques à universidade só fazem sentido por conta da legitimidade que ele reconhece na instituição. Ninguém elege como inimigo um oponente que não respeita. O desprezo que nutre pela “esquerda uspiana” caminha de par com sua trajetória de autodidata ignorado pelas instituições valorizadas do ambiente cultural brasileiro — sobretudo as editoras de ressonância acadêmica e as universidades com cultura de pesquisa consolidada. Raríssimas vezes seus ataques aos intelectuais da USP tiveram resposta. Pela simples razão de que os atacados não o consideravam um oponente digno de diálogo (uma exceção é Ruy Fausto, que em seu último livro discute a estratégia retórica de Olavo de Carvalho. O autor fez mais dois artigos sobre o tema, um na Folha , outro na Piauí , ambos após a eleição de Bolsonaro). Esse vazio é um evidente motor de ressentimento, que tem clara relação com a estridência de suas posições e a necessidade constante de ser aplaudido por sua claque.

Por fim, inconsequência porque deixou de se preocupar com a solidez dos argumentos. Nos últimos anos, com o aumento de sua audiência nas redes sociais, desistiu do reconhecimento dos intelectuais sérios e virou um mico de circo. Nesse processo, foi abandonado pela direita inteligente e assumiu a condição de guru de uma turma desprovida de formação, movida a ódio e ressentimento. Seus tuítes e entrevistas tornaram-se constrangedores, obcecados por excrementos, sexualidade infantil e agressões de toda sorte. Ele parece se divertir com isso. Mas seus seguidores o levam a sério. Mais até do que ele. De modo que se criou uma situação grave: os olavetes são mais leais a Olavo que o próprio Olavo. Um vídeo que ele gravou recentemente, chamando de burros seus seguidores que defendem a Escola Sem Partido, é o maior exemplo disso.

O papel de Olavo de Carvalho nas dinâmicas políticas nos últimos anos no Brasil foi crescendo aos poucos. Quando na votação do impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, o deputado Marco Feliciano mencionou Olavo em seu voto, uma luz amarela se acendeu. Algo havia mudado: Olavo tinha saído da esfera cultural para adentrar o mais baixo fisiologismo parlamentar. Esse movimento se deu de modo abrupto e a imprensa chegou tarde ao tema — parece só ter acordado agora para isso.

Quando começou a ganhar projeção, ocupava outros círculos. No fim dos anos 1990, nas revistas Bravo e República, então dirigidas por Luis Felipe Dávila, hoje quadro importante do PSDB, Olavo tinha participação nobre. Escrevia ensaios provocadores, falando mal do modernismo, da MPB, da crítica literária, do jornalismo, da USP. Poetas bons não eram Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, mas Bruno Tolentino. Críticos literários? Nada de Antonio Candido ou Haroldo de Campos, mas Otto Maria Carpeaux. Romancista para valer era Georges Bernanos. Filósofo, Ortega y Gasset. Ele tinha um cânone próprio, à margem das crenças hegemônicas nos jornais, editoras e universidades de prestígio, todos, segundo ele, instituições dominadas pela esquerda, e atraía interesse para esses autores. Era um sistema coerente que ele defendia, com o ímpeto dos que reinventam uma tradição para se colocar como legítimos herdeiros daquela linhagem. Isso dava a medida da ambição de seu projeto intelectual.

Remonta a esse período o início do culto a seu nome em alguns círculos de jovens. O melhor depoimento até agora sobre isso é o de Pedro Sette-Câmara, em texto recente para a Folha de S. Paulo. Ele conta que se interessou por Olavo após assistir a uma apresentação da peça “ Bacantes”, no Rio de Janeiro, dirigida por José Celso Martinez Correa. Ele estava presente no dia em que Caetano Veloso, na plateia, foi despido pelo elenco. Sette-Câmara enxergou naquele episódio um retrato da pequenez da establishment cultural brasileiro – e encontrou nas críticas de Olavo a esses círculos um antídoto poderoso em que se apoiar. Não consigo concordar com uma vírgula (José Celso é degradante por sua obsessão com sexo e os tuítes de Olavo sobre pedofilia não são?) Mas o fato é que o texto ajuda a entender o que levou muita gente em direção a Olavo naquele momento.

Com os escândalos de corrupção nos governos do PT, de 2005 em diante, o antipetismo se intensificou. A imprensa assumiu um tom mais contundente de crítica à esquerda. Para isso, o instrumental de Olavo era valioso. É quando tem início o período mais estridente da revista Veja. É o auge de Reinaldo Azevedo, que por esse tempo cunha o termo “petralha”. Um bloco coeso de colunistas de direita se apresentou naquele momento — e Olavo era o decano desse pessoal.

O projeto intelectual de Olavo deu com os burros n’água, mas seu projeto de poder é um dos mais bem-sucedidos de que se tem notícia

Olavo preenchia ainda um espaço ausente na universidade: o do diálogo franco e direto com os jovens. Num bom texto para o site Intercept , Joao Brizzi e Fabricio Pontin mostram como nessa época Olavo respondeu a anseios importantes de um público curioso e ávido por atenção, incluindo-o numa espécie de “alta cultura alternativa”, enquanto a universidade seguia autorreferida, fechada à diversidade, repetindo os bordões de sempre. Mesmo seu hábito de responder diretamente a qualquer um que o cite nominalmente joga a seu favor. É quase um troféu, para quem se considera de esquerda, ser agredido por Olavo no twitter. Não importa o gabarito de quem o alveja, ele considera todo mundo como interlocutor. Por mais que chute abaixo da cintura e xingue com volúpia, vai na contramão de um vício condenável do típico intelectual universitário, que é o de recusar o enfrentamento.

Mais ou menos na mesma época, meados dos anos 2000, virou o rei dos fóruns de Internet. Num outro texto esclarecedor sobre o processo, publicado há pouco na revista Serrote , Daniel Salgado mostra como se dava a discussão nesses fóruns, coalhadas de jovens inseguros em busca de aceitação. Ele deixa claro como Olavo é o rei da Doxa: ou seja, quem for ler os autores que ele indica, só pode fazê-lo pelo prisma que ele fornece de antemão. É evidente que os defensores mais fervorosos de Olavo não leram Gramsci, nem Carpeaux, nem mesmo Marx — apenas repetem as visões que seu professor lhes disse que devem cultivar a respeito deles.

Nos últimos anos, o crescimento avassalador das redes sociais e o colapso do petismo fizeram o resto do serviço. Em 2013, o lançamento de sua coletânea de textos, “O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota”, coincidiu com as revoltas contra o governo Dilma e disparou nas listas de mais vendidos. Hordas foram às ruas protestar, vestindo camisetas pretas em que se lia “Olavo tem razão”.  Com mais de 500 mil seguidores nas redes e 12 mil alunos nos cursos online, virou o youtuber preferido de quem buscava uma alternativa à direita do PSDB. Seu discurso ficou cada vez mais estridente, paranoico e nonsense. Gente séria que o apoiava abandonou o barco, cansada do messianismo do “Aiatolavo” (o apelido foi cunhado por Reinaldo Azevedo, que rompeu com ele nessa época). Mesmo seus epígonos menos articulados, mas com alguma ambição intelectual, como Rodrigo Constantino, pediram o boné. Sobraram Lobão, Roger Moreira, Alexandre Frota. E mais uma multidão de anônimos, revoltados ou não, a quem Olavo ajudou a dar voz – e que nós, por ele denominados típicos representantes do consenso de esquerda, estamos longe de decifrar. Em 2017, virou tema de um documentário que mostra seu cotidiano no interior dos Estados Unidos, onde vive há mais de dez anos, e o pinta como um vovô republicano que curte dar uns tiros no quintal. Daí para guru do bolsonarismo foi um pulo.

Mas vale lembrar que o temperamento do professor é tão instável quanto seus adjetivos. Ele brigou com todos os jornais por onde passou, com editoras onde ditou a linha editorial (a É Realizações, por exemplo), com colunistas que lhe davam apoio. Vive às turras com os próprios seguidores. É provável, portanto, que tenha vida curta o papel de intelectual oficial do governo. Ele mesmo gosta de frisar que sua relação com Bolsonaro e filhos é epidérmica. Bastou uma delegação do PSL partir em direção à China , na segunda semana de janeiro, para ele arrumar um entrevero feio com o partido. Talvez seja uma situação parecida com a de Paulo Guedes. A julgar por um excelente perfil publicado na revista Piauí há alguns meses, Guedes, como Olavo, é movido a ressentimento e pavio curtíssimo. Pula fora na primeira briga.

O fato é que o projeto intelectual de Olavo deu com os burros n’água, mas seu projeto de poder é um dos mais bem-sucedidos de que se tem notícia. Enquanto seguimos perdidos, tentando entender o que aconteceu, ele segue tranquilão lá nos EUA, saindo pra caçar ursos, dando tchauzinho para câmera, causando no Twitter.

Flávio Moura, jornalista e doutor em sociologia pela USP, é editor na Todavia

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