Aos 18 anos, Brics perde relevância. E abre espaço aos Trics

Ensaio

Aos 18 anos, Brics perde relevância. E abre espaço aos Trics
Foto: Ueslei Marcelino/Reuters

Vinícius Rodrigues Vieira


03 de dezembro de 2019

Grupo de potências emergentes chega à maioridade pouco coeso. No século 21, assistimos à volta da geopolítica e dos jogos de poder em que potências bélicas se impõem na cena global

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Há 18 anos, o mundo ouvia falar pela primeira vez na sigla BRICs, uma referência a Brasil, Rússia, Índia e China. Em 2001, na formulação inicial do economista Jim O’Neill, que via no grupo os quatro mercados emergentes mais promissores do século 21 — tal como detalhado num relatório apresentado ao banco Goldman Sachs —, a letra “s” indicava plural. A África do Sul — que deu ao BRICS seu “s” maiúsculo, do inglês South Africa — foi incorporada oficialmente ao quarteto apenas em 2011, quando aqueles países já tinham se aproveitado da sigla para formar um fórum político de potenciais emergentes, opostos em maior ou menor escala ao domínio ocidental nas relações internacionais.

De sigla para indicar a investidores mercados promissores a clube de nações, a ideia de Brics — um trocadilho com a sonoridade da palavra “brick”, que em inglês quer dizer bloco/tijolo — chega à maioridade desacreditada como grupo com um mínimo de coerência entre seus membros, seja para a ação conjunta entre eles, seja como categoria de análise política. Isso porque, dos cinco países que atualmente integram o clube, três vêm apresentando performance econômica medíocre há cinco anos: Rússia, Brasil e África do Sul. Como bem lembrou no Twitter o analista Ian Bremmer , esse trio, na verdade, encolheu nos últimos 20 anos em termos de crescimento anual. África do Sul e Brasil, aliás, não fazem sequer cócegas, do ponto de vista político, no domínio do ocidente, muito mais preocupado com as potências nucleares China, Índia e Rússia. O Brasil, portanto, talvez nem mais se enquadre na categoria de potência emergente, dado que a política externa do presidente Jair Bolsonaro implica num alinhamento automático aos Estados Unidos — e assim deve continuar enquanto Donald Trump for o inquilino da Casa Branca, a despeito de sucessivas traições do mandatário americano, sendo a última delas o aumento da tarifa de aço e alumínio para produtores brasileiros.

Além disso, desde meados desta década, o mundo ficou claramente mais complicado ou, como se diz em inglês, “tricky”. Em vez de tijolos (bricks) que contribuíram para a construção do edifício da globalização econômica e da governança global, os mercados e potências emergentes passaram a ser vistos como inimigos em potencial no ocidente, que cada vez mais procura se “desglobalizar”, fechando-se ao comércio e sobretudo à imigração. Vale destacar o caso dos EUA, dado que as políticas de Trump implicam desacreditar e, na prática, deixar à deriva as chamadas instituições multilaterais que deram fôlego à integração de mercados nos anos 1990 e 2000 — sendo a OMC (Organização Mundial do Comércio) a mais notória delas.

Cabe, portanto, pensar em categorias analíticas mais precisas para discutir a transição de poder político-econômico entre ocidente — isto é, Estados Unidos e seus aliados e parceiros comerciais na Europa Ocidental — e o oriente — cujo principal ator é, sem dúvida, a China. Não que o Brics, como projeto político, tenha sido infrutífero. A criação do Novo Banco de Desenvolvimento, mais conhecido como banco dos Brics, em 2014, e a cooperação técnica em áreas desde a ciência até a cultura são exemplos de como o grupo foi bem sucedido como fórum de colaboração em políticas públicas. Não teve, no entanto, o peso político ambicionado e reivindicado por chefes de Estado e de governo dos países-membros, em especial nos primeiros dez anos após sua institucionalização, em 2009.

Mais que África do Sul e Brasil, um terceiro ator desponta ao lado de Rússia, China e Índia como peça fundamental do tabuleiro de xadrez em que o mundo pós-globalização, caracterizado por crescente protecionismo e militarismo, se converteu. Estamos falando da Turquia, que, junto àquelas três potências nucleares, poderia formar os Trics: os países que mais vão chamar a atenção dos atuais “donos do mundo” ocidentais, por conta de sua capacidade militar e potencial econômico, mas, acima de tudo, devido às suas localizações geopolíticas, que os levam a ter envolvimento direto em questões de interesse vital para americanos e europeus — muitas vezes com posicionamentos opostos a eles.

Num mundo problemático, as nações capazes de dar as cartas na mesa são aquelas que, acima do fator econômico, têm prestígio por conta da força militar e do histórico de envolvimento nos grandes jogos globais por poder

No lugar dos “tijolos” dos Brics, que eram inicialmente colaborativos e, portanto, construtivos, os Trics seriam, como o trocadilho com a palavra “tricky” sugere, problemáticos aos olhos ocidentais: uma força disruptiva, mas não necessariamente destrutiva, no sistema internacional. Sai a economia, volta à cena a geopolítica após o intervalo liberal que durou entre 1989, ano da queda do Muro de Berlim, e 2008, quando teve início a Grande Recessão que abriu caminho para as turbulências desta década. Sob a égide da democracia liberal e dos livres-mercados — ambos não mais consensuais sequer entre as ditas nações ocidentais —, esse intervalo fez a direita e a esquerda sonharem, na transição da década de 1990 para os anos 2000, com o surgimento de algo similar a um governo mundial ao longo do século 21.

Faltou combinar com as contradições do capitalismo e da democracia liberal e com as (legítimas) ambições de países que, mais que emergentes, são potências “reemergentes”, ou seja, Estados soberanos que receberam o legado de antigos impérios dominantes até a consolidação da ascensão europeia na Revolução Industrial, e cujos líderes nacionalistas encarnam o ideal de grandeza econômico-militar. É assim que Xi Jinping e Vladimir Putin apresentam China e Rússia, respectivamente. O nacionalista Narendra Modi não tem grande um império hindu para reivindicar nos últimos mil anos, mas constrói seu domínio político doméstico e projeta a Índia moderna no exterior tendo como base o hinduísmo de mais de quatro milênios.

Sob essa lógica, África do Sul e Brasil são somente sociedades multirraciais hierarquizadas e jovens, que não existiriam sem o colonialismo europeu e, portanto, estariam degraus abaixo dessas grandes civilizações. Mais compatível é a Turquia do presidente Recep Tayyip Erdoğan, que adora ecoar o passado de seu país como centro do Império Otomano e do mundo islâmico, tendo estendido seu domínio sobre a Europa Oriental e o mundo árabe por séculos antes do domínio ocidental. Não coincidentemente, Erdoğan tem se afastado dos EUA e Europa, embora a Turquia siga como membro da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) e enfrente dificuldades econômicas. O presidente turco chegou até mesmo a citar a possibilidade de o país buscar um arsenal nuclear próprio.

O Brics não deixará de existir, mas seus membros tendem a se relacionar cada vez mais bilateralmente, como ocorreu na mais recente cúpula do grupo em Brasília , em novembro de 2019. O banco de desenvolvimento do bloco deve se expandir, mas é um ponto fora da curva: dificilmente Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul vão lançar novas iniciativas multilaterais, até porque as organizações internacionais de alcance global parecem estar em declínio, ainda que momentâneo. Num mundo problemático, as nações capazes de dar as cartas na mesa são aquelas que, acima do fator econômico, têm prestígio por conta da força militar e do histórico de envolvimento nos grandes jogos globais por poder.

O quarteto dos Trics, mais que quaisquer outros Estados soberanos, sai à frente da batalha que se avizinha na busca por poder em escala global no século 21. Ao Brasil, à luz da complicada conjuntura doméstica atual, caberia assistir, por ora, a tal disputa sem um alinhamento claro e definitivo, seja com o ocidente ou com qualquer um dos Trics, parceiros problemáticos por excelência, dados seus interesses e legados.

Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em relações internacionais pela Universidade Oxford, professor visitante na USP (Universidade de São Paulo) e também leciona na FGV (Fundação Getúlio Vargas) e na Faap (Fundação Armando Álvares Penteado).

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