Eleição, golpe e usurpação de poder: o caso boliviano

Ensaio

Eleição, golpe e usurpação de poder: o caso boliviano
Foto: Diego Valero/Agencia Boliviana de Información

Compartilhe

Temas

Leonardo Avritzer


01 de dezembro de 2019

Derrubada do presidente Evo Morales impõe desafio a cientistas políticos no entendimento do funcionamento da democracia no século 21

O Nexo depende de você para financiar seu trabalho e seguir produzindo um jornalismo de qualidade, no qual se pode confiar.Conheça nossos planos de assinatura.Junte-se ao Nexo! Seu apoio é fundamental.

A atual conjuntura na América Latina apresenta fortes desafios para os cientistas políticos. Aqueles que achavam que as instituições na região estavam fortes têm motivos para rever esse argumento, em particular neste segundo semestre de 2019, quando tivemos mobilizações e conflitos no Equador, no Chile e, agora, na Bolívia e na Colômbia.

Entre todos esses casos, o mais polêmico entre cientistas políticos é o da Bolívia, porque ele desafia a diferenciação entre golpe e degradação institucional. Além da mudança súbita na ordem político-legal, conceito que define um golpe, na minha opinião, três elementos reforçam esse cenário: a tentativa da oposição de derrubar um governo ainda que ele seja eleitoralmente legítimo; o uso de forças externas na concretização da derrubada do governo; e o desrespeito a mecanismos e princípios estabelecidos em lei no processo de reorganização do governo. No caso da Bolívia, temos tudo isso.

Evo Morales foi derrotado em um plebiscito acerca da possibilidade de concorrer a um terceiro mandato e apelou a um tribunal controlado por ele que lhe concedeu esta prerrogativa com base na doutrina de direitos humanos. Neste sentido, ele mesmo lançou dúvidas iniciais sobre a lisura do processo, o que se encaixa na ideia de degradação democrática produzida pelos próprios governantes.

A questão, portanto, não é se houve golpe na Bolívia ou não, e sim como a degradação institucional pode conduzir ao golpe, um precedente perigoso que se abre hoje na América Latina. Vale a pena analisar esse processo pelo qual o país vinha passando nos últimos anos.

Evo Morales foi um presidente exitoso no que diz respeito ao desempenho econômico da Bolívia na última década. Surfou não apenas no “boom das commodities”, mas também conseguiu, por meio da nacionalização das reservas de petróleo, que a economia crescesse acima de 4% em toda a década. Ao mesmo tempo, reduziu a pobreza extrema de 38% da população para menos de 15% . No entanto, esse êxito econômico não o levou a melhorar a qualidade da democracia boliviana, mas a tensioná-la por meio de um processo de politização e partidarização de instituições de controle.

A democracia não é degradada apenas pelos populistas, mas também por aqueles que querem derrubá-los independentemente das regras do jogo político

Esse processo começou com a decisão de reverter o resultado do plebiscito pela reeleição no qual ele havia sido derrotado em 2016 e se acentuou com as disputas em torno da realização ou não de um segundo turno durante as eleições de 2019. Vale a pena lembrar que as bases de Morales, que são fundamentalmente rurais, não se mobilizaram e o isolaram no mundo urbano boliviano, onde uma classe média conservadora tem forte presença. O resultado foi uma revolta de classe liderada por Fernando Camacho, um líder de extrema direita que seria uma espécie de mistura entre Jair Bolsonaro e Edir Macedo.

Alguns cientistas políticos tentaram justificar a derrubada de Evo Morales por meio de uma teoria da degradação institucional. Foi o caso do professor da Universidade Johns Hopkins, nos EUA, Yascha Mounk. Ele usa a chave populistas versus democratas para entender a Bolívia, afirmando que “foi sua perda de legitimidade entre a maioria dos seus companheiros que forçou [Evo Morales] a renunciar”. Mounk erra redondamente ao supor que uma teoria da degradação democrática substitui uma teoria do golpe.

Evo Morales renunciou porque sua situação precária, associada ao fato de os seus apoiadores serem rurais, permitiu à oposição organizar um golpe centrado em três ações principais: a entrada dos militares na cena política forçando sua renúncia; mobilizações de rua ameaçando seus apoiadores, que também renunciaram; e uma reorganização institucional fora de quaisquer regras do jogo político.

Mounk também erra ao afirmar que “os recentes acontecimentos em La Paz devem nos fazer esperar um futuro melhor…”. A suposição de que os populistas são um problema para a democracia, mas aqueles que os derrubam não o são constitui um enorme equívoco. A democracia não é degradada apenas pelos populistas, mas também por aqueles que querem derrubá-los independentemente das regras do jogo político.

Para os brasileiros fica o aviso. Não chegamos ao fundo do poço e aqueles que se acomodaram com a degradação democrática produzida por Bolsonaro podem descobrir que essa foi apenas a primeira etapa de um longo caminho poço abaixo.

Leonardo Avritzer é professor de ciência política na Universidade Federal de Minas Gerais e autor de “O pêndulo da democracia” (Todavia).

Os artigos publicados no nexo ensaio são de autoria de colaboradores eventuais do jornal e não representam as ideias ou opiniões do Nexo. O Nexo Ensaio é um espaço que tem como objetivo garantir a pluralidade do debate sobre temas relevantes para a agenda pública nacional e internacional. Para participar, entre em contato por meio de ensaio@nexojornal.com.br informando seu nome, telefone e email.