Governo por atacado: a política de Bolsonaro no meio ambiente

Ensaio

Governo por atacado: a política de Bolsonaro no meio ambiente
Foto: Bruno Kelly/Reuters

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Natalie Unterstell


31 de dezembro de 2019

O governo de Jair Bolsonaro atuou pouco na gestão de política ambiental em 2019 e se esforçou para ganhar a fama de vilão e descredibilizar a ciência

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O meio ambiente foi uma das áreas mais sensíveis da política brasileira em 2019. Evocado inúmeras vezes na agenda de política externa, sofreu com a baixa implementação de ações pelo governo federal, obtendo resultados ruins em um momento crítico para o controle do aquecimento global e para a proteção de ecossistemas.

2019 foi um ano dramático e cansativo. Começou com o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, esquentou com os incêndios em larga escala na Amazônia, no Cerrado e no Pantanal e terminou com o vazamento de óleo de fonte não identificada que castigou mais de 900 praias brasileiras ao longo de meses.

Fossem apenas esses problemas reais, já seria difícil administrar tantas perdas de vidas e recursos naturais. Mas o governo brasileiro se esforçou bastante para adquirir a fama de vilão por não ouvir a ciência nem agir conforme os protocolos e em prol do futuro.

A ciência e a lei foram desvalorizadas neste ano. O Presidente da República questionou publicamente a seriedade e a veracidade dos dados do desmatamento divulgados pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) . O chefe da pasta ambiental, ministro Ricardo Salles, chegou a ser vaiado em sessão plenária no Senado Federal em função do rompimento dos contratos do Fundo Amazônia com outros países. O chefe da pasta de minas e energia, Bento Albuquerque, acenou a investidores estrangeiros no Canadá que o governo cogita autorizar projetos de mineração (hoje ilegal) em terras indígenas. O Itamaraty negou-se a dar crédito a relatórios científicos do Painel Intergovernamental de Mudança do Clima (IPCC) na reunião do clima em Madri.

As palavras foram as grandes armas do governo Bolsonaro no campo ambiental. Com elas, incitou-se a invasão de terras públicas e as queimadas subsequentes. Também foi pelo verbo que o presidente interrompeu uma operação de fiscalização do Ibama e testou uma série de “balões de ensaio”, como transformar a Estação Ecológica de Tamoios, na região de Angra dos Reis, na “Cancún brasileira”. E jogou ao vento nos episódios de crise que as organizações da sociedade civil seriam as responsáveis por problemas como o vazamento de petróleo e as queimadas, colocando pessoas e reputações em risco.

Em 2019, o barulho foi também informação. E sinal político. No campo comercial, o mundo entendeu o recado de Bolsonaro de que “daquele mato lá longe chamado Amazônia cuidamos nós de qualquer jeito” como uma afronta ao futuro comum. França e Irlanda declararam oposição ao acordo de livre comércio aprovado entre a União Europeia e o Mercosul, alegando baixa confiança na capacidade do Brasil cumprir a cláusula ambiental. A Finlândia foi ainda mais longe e propôs retaliar comercialmente o Brasil em função da crise nas queimadas.Ainda no campo do “dar nome a quem deve passar vergonha”, Los Angeles e Nova York estão discutindo leis para proibir a compra de produtos de empresas relacionadas a incêndios florestais e desmatamento da Amazônia.

Em 2020, podemos esperar que o governo continue operando no atacado para a desregulação, testando a tolerância da sociedade brasileira a níveis mais altos de risco ambiental

Já o setor privado acenou preocupado com o aumento dos riscos reputacionais, operacionais e regulatórios nos negócios. Cerca de 230 fundos de investimento de 30 países, com US$ 16 trilhões em ativos, exigiram do Brasil, em comunicado conjunto, medidas efetivas para a proteção da Amazônia. Por isso também, 18 marcas americanas, como Timberland, Vans e The North Face, anunciaram um boicote à compra de couro brasileiro “até que haja confiança de que os materiais utilizados em nossos produtos não contribuem a danos ambientais”.

Não foi suficiente para mudar a forma de agir do governo federal. No auge da crise das queimadas, o Exército atuou em operação de Garantia da Lei e da Ordem, impedindo que o ambiente de faroeste continuasse a se propagar. Após 60 dias, com o fim da operação, voltamos ao caos anterior. Novembro de 2019 teve a maior taxa preliminar de desmatamento registrada para o mês, desde 2015, segundo o monitoramento pelo Inpe.

Não por acaso, em novembro foi revogado o decreto de zoneamento da cana de açúcar, que delimita as áreas de produção e até então excluía o cultivo da cana no Pantanal e na Amazônia. Alegando desburocratizar e simplificar a regulação para o produtor, o Ministério da Agricultura colocou todas as fichas na capacidade e boa vontade dos produtores implementarem o Código Florestal. Pagaremos para ver se a desregulação terá efeitos positivos ou elevará a percepção de risco e afastará investimentos em bioenergia, um setor que havia superado os passivos e consolidava sua reputação internacional ambiental.

Mas nem tudo passou incólume. O Ministério do Meio Ambiente autorizou a realização de um leilão em outubro para a oferta de sete blocos de exploração de petróleo nas proximidades do Parque Nacional de Abrolhos – que fracassou pela ausência de propostas. Um parecer técnico do Ibama havia vetado exploração de petróleo na região. Ativos “fósseis” também oferecem alto risco: eles tendem a perder valor e tornarem-se “ativos encalhados” nos balanços de investidores muito em breve, dadas as regulações de mudança do clima e a expansão vertiginosa das energias renováveis.

A gestão ambiental federal foi marcada por baixa implementação das políticas: nenhum dos R$ 357 milhões do Fundo Clima foi aplicado, nem os R$ 10 milhões do Fundo Nacional do Meio Ambiente. Além disso, a atuação fiscalizatória foi reduzida significativamente: o Ibama aplicou o menor número de multas ambientais dos últimos 15 anos. De janeiro a novembro, foram registrados 10.270 autos de infração, 25% a menos que no ano anterior.

Por outro lado, do ponto de vista formal, o governo buscou poucas mudanças regulatórias e de efeito concentrado. Apenas 10 decretos foram emitidos e 4 propostas legislativas foram enviadas ao Congresso Nacional no tema ambiental. Dessas 4, passou a lei do Saneamento Básico e a MP da Liberdade Econômica, que teve o capítulo relativo a ambiente vetado. A relativa à transferência da Funai para o Ministério da Agricultura foi derrotada. E a mais recente, MP da Regularização Fundiária, vai ser apreciada no próximo ano.

Percebeu-se uma nova estratégia.Se, nos anos anteriores, os governos tentaram redesenhar áreas protegidas – como a Floresta Nacional do Jamanxim e a famosa Renca (Reserva Nacional de Cobre e Associados), em 2019 o governo trabalhou no atacado. Propôs a revisão de todas as unidades de conservação existentes – desde o Parque Nacional de Itatiaia criado em 1934 até o Refúgio da Vida Silvestre da Ararinha Azul criado em 2018.

Também operando no atacado, Bolsonaro assinou um decreto presidencial para eliminar todos os colegiados de participação que não estivessem previstos em lei. Com essa medida, foram eliminados 15 conselhos associados à política de mudança do clima, 3 à agricultura e 5 ao meio ambiente. Quatro deles foram instituídos novamente no final do ano, incluídos aí os mecanismos de governança do Fundo Amazônia e do Fundo Clima.

E para fechar 2019, o Ministério da Economia implantou o “revisaço”, isto é, a revisão de todas as normas regulatórias já adotadas no Brasil. Não existe ainda uma lista indicando exatamente o alcance e a forma que tal revisão vai adotar – espera-se algo do tipo em abril do próximo ano. Os riscos de se retroagir nos padrões de emissões veiculares, por exemplo, são reais.

Em 2020, podemos esperar que o governo continue operando no atacado para a desregulação, testando a tolerância da sociedade brasileira a níveis mais altos de risco ambiental.

Natalie Unterstell é mestre em administração pública pela Universidade de Harvard. Pesquisa políticas públicas de meio ambiente e de mudança do clima.

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