A Medida Provisória nº 870/19 , que deu à Presidência da República a tarefa de “supervisionar” e “monitorar” o trabalho das Organizações Não Governamentais, as ONGs, ensejou forte reação da sociedade. Repetidas à exaustão, ideias de que elas recebem muito dinheiro ou não são fiscalizadas dificultam um debate qualificado sobre o significado e a importância de uma sociedade mobilizada e autônoma. Conhecer as falhas dessa mitologia e concentrar nos problemas concretos da relação Estado e ONGs é tarefa urgente.
Mito 1: as ONGs recebem muito dinheiro e nada fazem
O primeiro equívoco é a crença de que a maioria das associações sem fins lucrativos é financiada pelo governo federal. Nada mais falso. No ano de 2016, só 7.000 de um total de 820 mil entidades com CNPJ válido receberam recursos diretamente. E, hoje, apenas 5.000 entidades gozam do direito às isenções sobre os encargos de folha de pagamento do Cebas (Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social).Em 2016, as transferências correspondiam a apenas 0,35% do orçamento federal, cerca de metade do que representavam em 2001 (0,71%).
Quando analisados em termos absolutos, os R$ 6,3 bilhões de transferência em 2017 parecem um mar de rosas para as ONGs. Porém, por conta da classificação societária do direito civil brasileiro e das regras de aplicação do orçamento, esses números agregam hospitais de excelência, associações de pais e mestres e fundações públicas, como o Instituto Butantã. Quando apresentados sem refinamentos, os números globais alimentam uma ideia equivocada de que o governo investe demais nas ONGs. Um dos pontos cegos desse debate é que as transferências para as chamadas entidades de defesa de direitos sofreram uma queda abrupta nos últimos anos.
Mito 2: as ONGs recebem dinheiro do governo sem que exista algum tipo de controle
Poucas afirmações carecem tanto de base empírica como essa, pois o que acontece é exatamente o oposto. Boa parte das parcerias são submetidas a dois, três ou até quatro instâncias de controle. A fiscalização começa nos editais de seleção (hoje, como regra), no corte temporal de existência/experiência (três anos, no mínimo) e na própria execução, exercida pela área técnica governamental que celebra a parceria. Em adição a essa fiscalização preliminar, as parcerias são submetidas a diversas instâncias de fiscalização permanente, tais como a Controladoria-Geral da União, o Tribunal de Contas da União e o próprio Ministério Público. Para além do controle individualizado de cada parceria, a própria política pública à qual ela está vinculada pode ser objeto de auditoria mais completa e ser investigada por comissões temáticas e comissões parlamentares de inquérito do Congresso Nacional. Não é raro que entidades recebam notificações destas instâncias para prestação de informações extras sobre as parcerias celebradas.
Ao longo dos anos, houve também forte movimento de financiadores privados no sentido de que cada projeto ou parceria realizada tenha prestação de contas elaborada. Além disso, doadores privados atuam para que as parcerias celebradas monitorem e apresentem resultados concretos e verificáveis.
O resultado prático desses movimentos é que cada real captado por uma ONG, proveniente do poder público ou de um doador privado, entra no caixa das entidades juntamente com um conjunto de obrigações acessórias bastante exigente, seja do ponto de vista do controle da execução dos projetos, seja dos resultados que a entidade têm de gerar. Assim, afirmar genericamente que ONGs recebem muito dinheiro e não são controladas não tem fundamento.
Mito 3: ONGs têm “viés ideológico”
Uma das características principais da sociedade civil brasileira é a sua pluralidade. Entre as mais de 800 mil entidades existentes estão representados os mais diferentes espectros ideológicos e religiosos. Longe de representarem a opinião de um único partido, essas vozes possuem diferentes projetos de Brasil. Além disso, a sociedade civil tem sido crítica a qualquer governo.
No trabalho cotidiano que realizam, as entidades rapidamente percebem as dificuldades e a exclusão que marcam a sociedade brasileira e buscam soluções estruturais para os problemas com que convivem. Essa busca constante incomoda quem está no poder, pois tensiona a disputa pelos recursos orçamentários e dá espaço a uma série de questões “invisíveis” aos olhos dos grandes centros econômicos e da elite política. São as ONGs que atuam juridicamente para proteção de públicos vulneráveis e com baixa representação nas instâncias formais de poder, como crianças, indígenas, pessoas com deficiência, hansenianos, mulheres vítimas de violência, e outros sobre os quais se processam frequentes violações de direitos humanos e fundamentais. Identificar a atuação dessas entidades com o adversário político ajuda a polarizar e demonizar a execução de suas atividades. No entanto, os problemas que elas apontam continuam lá, vivíssimos, e carentes de soluções inteligentes.
***
Insistir nesses equívocos faz com que o Brasil perca oportunidades enormes. Para além de sistemas estatais de provisão de serviços públicos essenciais, os países com maior grau de desenvolvimento possuem uma combinação virtuosa entre sociedade civil crítica, cultura de doação consolidada e engajamento comunitário cotidiano. Essas características contribuem para produção sistemática de bens públicos não necessariamente estatais; para o atendimento assistencial aos que mais precisam; para a descoberta de formas inovadoras de superar problemas relacionados a políticas públicas e para o desenvolvimento de iniciativas econômicas mais solidárias e sustentáveis.
A reprodução da visão retrógrada de que as ONGs existem para “saquear” e “usurpar” o governo só alimenta uma visão mistificadora da relação entre sociedade civil e Estado. Construir uma agenda de valorização do trabalho dessas organizações é essencial para a manutenção do ambiente democrático no Brasil e para que o país caminhe rumo ao desenvolvimento pleno de seu potencial.
Diogo Santana é doutor em direito pela Universidade de São Paulo e mestre em administração pública pela Harvard Kennedy School.