Toda história tem mais de uma versão. Nesta, há na certa pelo menos duas. Uma é mais sutil; a outra, menos. Começo pelas sutilezas da identidade e do sentimento, sem saudosismo.
Na região de Aparecida, no estado de São Paulo, há quase um século, se não mais, os reis do Congo louvam São Benedito e Nossa Senhora do Rosário. No Brasil, desde o século 17, as irmandades do Rosário, Nossa Senhora dos Pretos, coroam escravos em festas de Casa Grande. Na cidade do santuário dedicado à santinha preta, padroeira do Brasil e em seus arredores, reinam ainda hoje pretos e pobres, pelo menos no tempo da festa. Contudo, não reinam sozinhos. Reinam também, em disputa acirrada, padres, pastores, políticos, comunicadores e o comércio. Tempo de festa é tempo de guerra.
Tradições como a congada passaram a ser reconhecidas e oficialmente proclamadas como patrimônio apenas com a Constituição de 1988. Até aquele momento, a honraria e o privilégio do reconhecimento, proteção e valorização pelo Estado – por meio do tombamento de bens materiais ou registro dos imateriais – eram exclusivos de monumentos, conjuntos arquitetônicos, paisagens, documentos em papel ou obras de arte culta, entre outros.
A partir de então, o direito à diversidade – que de certo modo nos une e se expressa no patrimônio –passou a estar ao alcance dos “diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”, nas palavras da Carta Magna brasileira. Nosso sentimento de perda e as manifestações de pesar e solidariedade que recebemos de toda parte em razão do incêndio do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, ocorrido há alguns meses, da mesma forma que o modo como fomos tocados por outro incêndio devastador, desta vez o da Catedral de Notre Dame, em Paris, de fato mostram que nos espelhamos e reconhecemos uns nos outros.
O direito ao patrimônio é uma vitória das mais importantes da Cultura, com C maiúsculo, entendida como diversidade de modos de vida, valores, conhecimentos, crenças e atitudes próprios dos seres humanos.
Porém, nem todos objetos e monumentos têm a mesma importância para nós próprios ou para os outros, seja afetivamente, intelectualmente, politicamente, economicamente, ambientalmente. Na verdade, o que deve ser protegido em nome do interesse público, e com recursos públicos, deve ser laboriosamente identificado. Esse trabalho depende do conhecimento profundo da relação entre povos e a natureza, da história e das dinâmicas culturais nos vários campos da expressão humana. Esses saberes são desenvolvidos nas universidades e centros de pesquisa, em diálogo com movimentos sociais. Dele derivam os argumentos que podem legalmente justificar, ou não, a proteção de um bem cultural pelo Estado. Cabe ao Poder Executivo amparar esse processo de identificação (que depende de operações intelectuais) e administrar o conjunto de bens e manifestações culturais selecionados, segundo as orientações do conselho de patrimônio. Sua função, como o próprio nome diz, é executiva.
Em vista de que, desde sempre e em toda parte, as interpretações da realidade variam, decisões finais a respeito de patrimônio são tomadas por conselhos, onde se reúnem especialistas e gestores públicos. No estado de São Paulo, essa instituição é denominada Condephaat – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico; no âmbito federal, é o Iphan, e, no mundial, a Unesco.
Entretanto, o cumprimento e devida operacionalização do que a Constituição hoje nos assegura é parte da luta cotidiana de quem identifica e administra o patrimônio. As tensões políticas e conceituais que são próprias do campo do patrimônio – já que há sempre muitos interesses e concepções em conflito – costuma ser resolvida pela via do debate de ideias, que tem incorporado cada vez mais as manifestações da sociedade. Não têm sido outras as razões pelas quais a composição desses conselhos – e, em particular do Condephaat – tem se transformado, no sentido de incorporar concepções e demandas sociais sempre em mudança. Tem-se mantido, ainda assim, a discussão bem informada como base legítima das deliberações.
O decreto 64186/2019 de João Doria no governo do estado de São Paulo, que mutila barbaramente a composição do colegiado do Condephaat, abriu um desvio nesse processo, que se propõe a ir na absoluta contramão do que ocorre nos países democráticos e na Unesco. Infelizmente, os dados são gritantes. Assim, passamos à segunda versão desta história, mais crua e odienta, que tem como pivô o desvio da rota democrática que vem sendo construída em São Paulo – e no Brasil – há mais de 30 anos.
O assunto ganhou destaque na imprensa e nas redes sociais. Resolvi conferir. Estranhei desde logo que o universo do patrimônio, que para mim é tão complexo, fosse simplificado como se dissesse respeito a duas forças apenas, tal como numa partida de futebol ou ringue de boxe. Refletindo sobre o decreto a partir dessa lógica esdrúxula, encontrei a situação que retrato no gráfico a seguir que, aliás, não indica, para 2019, absolutamente nada que se aproxime da alegada paridade (retorna o princípio dos dois campos em confronto) que, segundo declaração do secretário da Cultura, explicaria essas mudanças:
Em 1983, houve significativo aumento da participação de professores e pesquisadores no colegiado, se tomarmos como ponto de partida 1968, ano de sua fundação sob a ditadura militar. Nesse intervalo de 15 anos, a diferença entre os dois campos supostamente em confronto passa de 34 pontos percentuais para 54 pontos percentuais, sendo que somente as universidades passam de 2 a 13 cadeiras. Ou seja, na lógica de Doria, de 2 a 13 votos. Alimentado pelos ventos benéficos da Constituinte onde se consagra nova definição do patrimônio, o aumento respondia a essa mudança e valorizava a contribuição acadêmica, atualizando o número de instituições uma vez que São Paulo dispunha, nessa época, não mais de apenas uma, mas de três universidades públicas (USP, Unicamp e Unesp), todas altamente qualificadas nas quatro áreas de atuação relevantes para o patrimônio (geografia, história, ciências sociais e arquitetura) além da arqueologia, que não é tão amplamente disseminada. Ainda não havia universidades federais no Estado.
Eis que em 2019, uma decisão sem precedentes inverte a tendência e mesmo o quadro de 1968, quando a representação indicada pelo Executivo (sempre seguindo a lógica do decreto Doria) detinha 33% das cadeiras e as demais organizações, inclusive as a universidades públicas, 67%. Hoje, o governo reserva para si 71% do espaço e confina nos restantes 29% o suposto antagonista reduzido a representantes inespecíficos de três universidades estaduais e de uma federal (Unifesp), e deixa de fora a reconhecida Ufscar, que tem produzido importantes contribuições ao conhecimento na área do patrimônio
A decisão do governador João Doria explicita o entendimento equivocado de que o campo do patrimônio se estruturaria com base em duas áreas adversárias. E mais, agindo como dono da bola numa disputa de futebol amador, define regras que assegurem sua vitória incondicional. Peço aos incrédulos que confiram.
O triste resumo dessa história é que se busca neutralizar o avanço dos movimentos sociais nos últimos 30 anos, preferindo a vantagem numérica ao debate intelectual e desprezando as contribuições que os centros universitários e de pesquisa estão habilitados a dar. Sem argumento, a secretaria que se diz da cultura tenta assegurar para si uma hipotética vitória no braço, sob o disfarce da ‘paridade’. Muito triste.
Antonio Augusto Arantes Netoé professor de antropologia na Unicamp. Vice-presidente do Comitê Científico Internacional do Icomos para o Patrimônio Imaterial. Ex-presidente do Iphan, do Condephaat e do Condepacc.