O impacto do coronavírus e as muitas desigualdades

Ensaio

O impacto do coronavírus e as muitas desigualdades
Foto: Ali Hashisho/Reuters

Jonathan Whittall


23 de março de 2020

A impotência sentida por muitos de nós hoje são todos os medos e preocupações sentidos por muitos na sociedade que foram excluídos, negligenciados ou mesmo alvo daqueles em posições de poder

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Como você deve lavar as mãos regularmente se não tem água corrente ou sabão? Como você pode implementar o “distanciamento social” se você mora em uma favela ou em um campo de refugiados? Como você deve parar de cruzar fronteiras se está fugindo da guerra? Como as pessoas com condições de saúde pré-existentes tomarão precauções extras se já não puderem pagar ou acessar o tratamento de que precisam?

Todos são afetados pela pandemia da covid-19, mas o impacto pode ser sentido por alguns mais do que por outros.

As pessoas que sofrerão nessa epidemia especialmente serão as que já foram negligenciadas — vítimas das medidas de austeridade, que fugiram por causa da guerra, que não têm acesso ao tratamento para condições existentes por causa de cuidados de saúde privatizados.

À medida que a doença se espalha, a infecção continuará expondo as desigualdades existentes em nossos sistemas de saúde. Expõe a exclusão de certos grupos do acesso aos cuidados, seja por causa do status legal que possuem ou por outros fatores que os tornam alvo do Estado. Expõe o investimento insuficiente em saúde pública gratuita para todos, o que significa que o acesso a cuidados de qualidade será, para alguns, baseado no poder de compra e não na necessidade médica. Expõe o fracasso dos governos — não apenas os serviços de saúde — em planejar e fornecer serviços que atendam às necessidades de todos. Expõe as ameaças à vida causadas por deslocamentos populacionais forçados, violência, pobreza e guerra.

As pessoas que sofrerão nessa epidemia especialmente serão as que já foram negligenciadas — vítimas das medidas de austeridade, que fugiram por causa da guerra, que não têm acesso ao tratamento para condições existentes por causa de cuidados de saúde privatizados. E também serão aquelas que não podem estocar alimentos porque já não podem pagar uma refeição todas as noites da semana, que são mal pagas, sobrecarregadas de trabalho e privadas de licença médica, incapazes de trabalhar em casa — e aquelas presas em zonas de conflito sob bombardeio e cerco.

E como você deve tratar os pacientes sem todo o material necessário? Muitos sistemas de saúde que se preparam para o impacto da covid-19 já foram atingidos pela guerra, má administração política, recursos insuficientes, corrupção, austeridade e sanções. Eles mal conseguem lidar com as cargas normais dos pacientes.

A covid-19 está demonstrando como as decisões políticas de exclusão social, acesso reduzido à assistência médica gratuita e aumento da desigualdade serão agora sentidas por todos nós. Essas políticas são inimigas da nossa saúde coletiva.

A organização MSF (Médicos Sem Fronteiras) aumenta sua resposta à pandemia da covid-19, nos concentraremos nos mais vulneráveis e negligenciados. Começamos a trabalhar em Hong Kong no início deste ano, em resposta aos primeiros casos da doença, e agora temos equipes médicas posicionadas para responder no coração da pandemia na Itália. Continuaremos a aumentar o time o máximo possível, à medida que a crise se espalhar.

No entanto, existem decisões que podem ser tomadas agora que já aliviarão o desastre iminente que muitas comunidades poderão enfrentar em breve. Os campos congestionados nas ilhas gregas precisam ser evacuados. Isso não significa enviar pessoas de volta para a Síria, onde a guerra ainda ocorre. Significa encontrar uma maneira de integrar as pessoas nas comunidades onde elas poderão praticar medidas de segurança, como distanciamento social e autoisolamento.

Além disso, os suprimentos precisam ser compartilhados entre fronteiras, de acordo com onde as necessidades são maiores. Isso precisa começar com os países da Europa, compartilhando seus suprimentos com a Itália. Em breve, será necessário estender-se a outras regiões afetadas por essa pandemia e cuja capacidade de enfrentamento já esteja comprometida.

Como MSF, também precisaremos gerenciar as lacunas que enfrentaremos na equipe de nossos outros projetos de emergência em andamento. Nossa resposta médica ao sarampo na República Democrática do Congo precisa continuar. O mesmo acontece com a nossa resposta às necessidades emergenciais das comunidades afetadas pela guerra dos Camarões ou da República Centro-Africana. Essas são apenas algumas das comunidades para as quais não podemos deixar de olhar. Para elas, a covid-19 é mais um ataque à sobrevivência.

Essa pandemia está expondo nossa vulnerabilidade coletiva. A impotência sentida por muitos de nós hoje, as rachaduras em nosso sentimento de segurança, as dúvidas sobre o futuro. Esses são todos os medos e preocupações sentidos por muitos na sociedade que foram excluídos, negligenciados ou mesmo alvo daqueles em posições de poder.

Espero que a covid-19 não apenas nos ensine a lavar as mãos, mas faça os governos entenderem que a assistência médica deve ser para todos.

Jonathan Whittall é diretor do Departamento de Análise da organização Médicos Sem Fronteiras.

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