Para pensarmos sobre o Fundeb, precisamos ir além da planilha

Ensaio

Para pensarmos sobre o Fundeb, precisamos ir além da planilha
Foto: Nacho Doce/Reuters

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Gregório Durlo Grisa


21 de julho de 2020

A reflexão sobre investimento em educação deve ter presente as condições concretas das redes de ensino e das escolas, e partir da ótica da garantia do direito à educação à luz da tríade universalização, equidade e qualidade

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Em sua coluna publicada no domingo passado na Folha de S.Paulo, o economista Marcos Lisboa tratou do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação). Como de costume, o autor reivindica (corretamente) que o uso de evidências deveria orientar políticas públicas, mas, nesse caso, ele parece não ter lido muito sobre o tema e nem mesmo a proposta do texto atual da PEC (Proposta de Emenda Constitucional) nº 15 .

Para refletir sobre o Fundeb, Lisboa aborda o tema da aprendizagem, que envolve dimensões como gestão da escola, formação, monitoramento e seleção de docentes, metodologias de ensino, currículo e condições prévias de conhecimento dos estudantes. Esse assunto não está no escopo direto do Fundeb e não pode e nem deve ser tratado no âmbito da Constituição Federal.

O objetivo do Fundeb é promover equidade orçamentária, o que já foi cumprido em anos recentes — a desigualdade entre investimento por aluno nas redes municipais caiu de 10.012% para 564% segundo estudo da Consultoria da Câmara dos Deputados —, e muito mais pode ser feito se aprovado o texto proposto pela relatora deputada Professora Dorinha.

Lisboa mistura questões que cabem preponderantemente aos sistemas de ensino (redes estaduais e municipais) com o Fundeb, que é estrutural, relativo ao financiamento. Há um problema qualitativo de análise ao se relacionar dimensões atreladas a gestões regionais e locais, como as relativas à aprendizagem, com o Fundeb, cuja natureza é ser um colchão orçamentário para valorizar profissionais, ofertar condições dignas de trabalho, melhorar frequência e fluxo escolar.

A aprendizagem, óbvio, é um efeito necessário e desejável. O Brasil, em tempos recentes, atingiu as metas do Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) nos anos iniciais do ensino fundamental e avançou de forma significativa nos anos finais. A melhoria na educação foi mais expressiva no Norte e Nordeste , regiões que mais receberam recursos do Fundeb a partir de 2008.

Para dizer que o novo Fundeb ampliaria velhos problemas, Lisboa cita referências (problemáticas e já digo por que) de um grupo político específico, mas mesmo elas apontam que “a existência do Fundeb está associada a uma redução do índice de Gini em mais de 50%”. As sugestões que o artigo citado pelo autor traz para tornar o Fundeb mais equitativo estão contempladas na PEC 15 (bastava ler), logo, ele não “amplia velhos problemas”, pelo contrário, o novo Fundeb tem um desenho melhor.

Por que as referências de Lisboa são problemáticas? Elas insinuam que o Fundeb não teve efeito na qualidade da educação ou na distorção idade-série. Mesmo reforçando que fazer uma relação linear entre aprendizagem e Fundeb seja algo despropositado, pois muitas variáveis escapam, outros trabalhos apontam que a realidade não é bem essa, inclusive para o ensino médio , que é a etapa mais desafiadora no que tange a aprendizagem.

O artigo de Marcos Lisboa parece ser um esforço para se provar que segasta muito em educação. Tese infundada a que só adere quem trata o tema de forma superficial

O Brasil tem um sistema educacional de implantação tardia, um investimento em educação minimamente razoável bem recente, profissionais com salários abaixo de outros com formação semelhante, uma desigualdade interna de financiamento enorme e escolas com infraestrutura muito limitadas. Diante dessas características, olhar para educação só pelo prisma do “custo-benefício” é desconsiderar a complexidade dos esforços que envolvem sua oferta e as dimensões extraescolares que influenciam a aprendizagem e o rendimento dos estudantes em escala importante.

O autor menciona ainda “cidades pobres que zelam pela gestão de ensino e conseguem resultados surpreendentes”. Típica argumentação com base na exceção, para dizer que “todos podem”, muito utilizada pelos defensores da cantilena da meritocracia.

Qual é a realidade? Há uma correlação nítida entre a disponibilidade de recursos por aluno e os resultados do Ideb, como mostra um didático trabalho do Todos Pela Educação, que também coloca em xeque a suposta “ineficácia” do Fundeb em relação à aprendizagem. Ainda temos um subfinanciamento na educação básica brasileira: 46% dos municípios não atingem R$ 4.300 por aluno, valor de referência mínimo para se alcançar um Ideb satisfatório. O valor investido define sozinho os indicadores de qualidade? Não, sem dúvida a gestão e outros fatores também influenciam, contudo, conclui o estudo citado acima: “em 2015 era muito raro que uma rede de ensino — mesmo eficiente no uso de recursos — alcançasse um resultado de qualidade satisfatório em contextos de disponibilidade fiscal por aluno abaixo de R$ 4.300”.

Lisboa encerra o texto dizendo que o Fundeb não deve ser permanente, mas aprovado por mais um tempo, e que deve ser pensada uma “reforma voltada ao aprendizado”. Novamente parece que o autor não leu a PEC 15, que prevê avaliação legislativa em 2026 e traz medidas de indução de boas práticas tanto ao estabelecer critério para distribuição da cota municipal do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), quanto ao prever que 2,5% dos novos recursos sejam distribuídos com base em indicadores de melhoria de gestão e da aprendizagem.

Além disso, fica claro que garantir o Fundeb e pensar em políticas com foco na aprendizagem não são coisas excludentes. O fundo representa 65% do investimento em educação básica pública no país, não a totalidade. Outras formas de indução de qualidade podem ser planejadas e executadas pelo Ministério da Educação e pelos sistemas de ensino, se utilizando de recursos das transferências voluntárias (salário-educação) e das próprias redes de ensino.

O artigo de Marcos Lisboa, assim como o de Marcos Mendes sobre o Fundeb em fevereiro, parece ser um esforço para se provar a fórceps que se “gasta muito em educação”. Tese infundada a que só adere quem trata o tema educacional de forma superficial, quem toma a variável do investimento em relação ao PIB como fim e não início do debate, quem trata a educação como um bloco homogêneo em que tudo pode ser medido pela régua das “médias”.

Os economistas mencionados têm respeitabilidade e grande espaço na imprensa. Ao criticarem o Fundeb, se arriscando em um tema que parecem não conhecer em todas suas dimensões, acabam, na prática, por dar apoio político indireto às propostas intempestivas e tecnicamente bisonhas feitas pelo atual governo às vésperas da votação da PEC 15 na Câmara dos Deputados.

A proposta do novo Fundeb prevê ampliação da complementação da União de 10% para 20% em seis anos, o que representa algo em torno de R$ 15 bilhões a mais para toda educação básica. Tanto o atual governo como alguns setores tipicamente fiscalistas veem com desconfiança esse aumento, que, a meu ver, deveria ser maior. Apenas com os penduricalhos dos salários dos militares aprovados este ano, a União irá gastar R$ 26 bilhões em cinco anos. De 2019 para 2020, a previsão do aumento dos gastos tributários da União é de R$ 24 bilhões. O país investe R$ 5 bilhões (R$ 30 bilhões em seis anos) por ano na educação da classe média remediada e da classe alta ao restituir os gastos com educação do imposto de renda. Essas e tantas outras despesas são pouco questionadas em comparação com as críticas feitas ao Fundeb, política tão exitosa.

É necessário proteger e ampliar os recursos para manutenção e desenvolvimento de ensino no Brasil, evitando que eles tenham outros destinos, como infelizmente ocorre com o pagamento de inativos em muitos estados. A reflexão sobre investimento em educação deve ter presente as condições concretas das redes de ensino e das escolas, partir da ótica da garantia do direito à educação à luz da tríade universalização, equidade e qualidade. Temos estágios muito diferentes em regiões, estados e municípios e o Fundeb permanente, com mais recursos, com previsão de acompanhamento transparente e avaliação por indicadores representa um avanço para a educação.

Gregório Durlo Grisa é professor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul, mestre e doutor em educação pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

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