A França tem chamado a atenção do mundo nas últimas semanas por conta do movimento “antivacina”. Assistimos com certa perplexidade desde notícias de pessoas que falsificam atestados (pagam de € 250 a € 500 pelo atestado falso) até cidadãos que depredam postos de saúde.
Mesmo que mais da metade da população do país europeu já esteja com o ciclo da imunização completo, esse movimento representa uma ameaça. Ele tem acontecido como forma de contraposição às políticas públicas que o governo francês decretou recentemente. Essas medidas do governo francês se mostram necessárias diante da ameaça de uma quarta onda de covid-19 no país, sobretudo por conta da nova variante delta que tem sido encontrada em mais de 80% das novas contaminações.
O fato é que esse movimento antivacina atrai para essas manifestações os céticos em relação à eficácia da vacina, como também pessoas que já foram vacinadas, mas que não têm concordado com as restrições que o governo de Emmanuel Macron tem imposto aos franceses.
Radicais ou não, logo após o anúncio das novas medidas restritivas houve uma corrida pelo agendamento da vacinação contra covid-19. Foram registrados nas primeiras 48 horas mais de 2 milhões de agendamentos. Isso nos leva a uma primeira ideia a ser discutida aqui: sem políticas públicas e campanhas eficientes, não conseguiremos resultados expressivos no combate à pandemia.
Podemos dizer que esse movimento antivacina já se fez presente na história do Brasil. Vale lembrar que um dos episódios mais famosos foi a Revolta da Vacina , em 1904, na cidade do Rio de Janeiro, então capital do Brasil. Naquele período, a vacina era o principal meio de combate contra a varíola. Por conta disso, Oswaldo Cruz apresentou ao Congresso Nacional um projeto de lei que reinstaurava a obrigatoriedade da vacinação e a revacinação em todo o país, metas até então nunca cumpridas.
A nova lei continha cláusulas rigorosas que incluíam multas aos refratários e a exigência de atestado de vacinação para matrículas nas escolas, acesso a empregos públicos, casamentos e viagens.
No dia 5 de novembro de 1904 foi criada a Liga Contra a Vacinação Obrigatória. E dos dias 10 a 16 de novembro aconteceram na capital carioca conflitos entre os manifestantes e a polícia e o Exército. Ao todo, foram 945 prisões, 461 deportados, 110 feridos e 30 mortos, conforme dados do Centro Cultural do Ministério da Saúde.
Paralelo a isso, ocorria também uma série de despejos por conta do projeto de reurbanização encabeçado pelo prefeito do Rio de Janeiro, o engenheiro Pereira Passos, a pedido do Presidente Rodrigues Alves (alargamento de ruas, fim dos cortiços e grandes obras públicas).
Essas obras obrigaram as camadas mais pobres da população a deixarem, contra a sua vontade, seus casebres e cortiços, dando início ao movimento de ocupação nos morros que aumentou o desenvolvimento das favelas. Todos esses acontecimentos deixaram a população muito insatisfeita e isso culminou na Revolta da Vacina. O movimento antivacina acabou arrebanhando os insatisfeitos com o governo, e promovendo conflitos que trouxeram muitos prejuízos econômicos, sociais e humanos.
Sem políticas públicas e campanhas eficientes não conseguiremos resultados expressivos no combate à pandemia
Vale lembrar que em 1908, o Brasil registrou índices ainda mais alarmantes de casos de varíola. Entretanto, após a Revolta da Vacina paralisar o Rio de Janeiro quatro anos antes, não houve resistência à vacinação em 1908. Nem resistência nas campanhas seguintes que ocorreram em 1914 e 1926.
Por que não houve resistência contra a vacina nesses períodos seguintes? Em grande parte, por conta da ausência das demais insatisfações políticas vivenciadas nesses períodos. O que ocorreu na Revolta da Vacina foi impulsionado por questões políticas alheias à própria ideia da vacina.
Até o ano de 1966, o Brasil ainda era a última fronteira da varíola nas Américas, alvo crescente de pressões internacionais. No entanto, os militares que estavam no poder queriam erradicar a doença para obter reconhecimento e legitimidade diante das potências internacionais, sobretudo no período mais turbulento da ditadura militar no Brasil.
Para suas campanhas, os militares tinham como método envolver a população no que se referia à vacina, a transformavam num evento, e não promoviam a desconfiança. Apesar da obrigatoriedade e das restrições legais de não poder viajar, não ter registro na carteira, não matricular nas escolas, o que realmente contou foi a mobilização social.
É fato que a vacinação contra a febre amarela, contra a tuberculose e contra a poliomielite nos anos 1940 e 1950, foram aumentando a convivência da sociedade com vacinas e seus possíveis efeitos benéficos. Mesmo assim, estamos regredindo. Os protestos na França e no mundo encabeçados pelo movimento antivacina logo começarão a questionar os outros imunizantes e, com isso, doenças erradicadas podem voltar, como o sarampo.
Precisamos entender que a vacina é um pacto social: abrimos mão de pretensos direitos para obter vantagens em ordens sociais. Por isso, vivemos em tribos desde o paleolítico até agora em sociedades.
O governo precisa fazer sua parte: campanhas para acabar com essa “escolha” de vacinas, e promover a conscientização de que é preciso tomar a segunda dose e, mais do que qualquer outra coisa, é preciso vacinar a população (agilizar a vacina para todos).
As campanhas de vacinação fazem parte da constituição do Brasil. Para muitos, a primeira relação com o Estado é por meio da vacinação. Precisamos, pelo bem das próximas gerações, voltar à nossa cultura da imunização, tendo o SUS como baluarte dessa resistência contra os movimentos antivacina.
Álvaro Fonseca Duarte é historiador, mestre em história pela Universidade Federal do Paraná, é consultor pedagógico, professor e criador do podcast Ensaios da Ágora.
Antonio Djalma Braga Junior é filósofo e historiador, doutor em filosofia e professor da Escola de Direito e Ciências Sociais da Universidade Positivo.