Na esteira dos vastos impactos da pandemia da covid-19, a fome voltou às manchetes e a diferentes espaços públicos de discussão brasileiros. Se, antes disso, até mesmo o presidente da República era capaz de afirmar que este era um tema do passado, agora não há mais como negar: o Brasil está prestes a voltar ao Mapa da Fome da ONU (Organização das Nações Unidas).
São muitos os indicadores que confirmam o agravamento desse quadro lamentável. Dados divulgados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em setembro, referentes aos anos de 2017 e 2018, apontam que 5% da população, algo acima de 10 milhões de pessoas, já vivenciavam uma situação de insegurança alimentar grave mesmo antes da pandemia. O Brasil retrocedeu 15 anos em cinco, com mais de 84 milhões de pessoas enfrentando algum grau de insegurança alimentar — número que tende a aumentar ainda mais daqui em diante com o fim do auxílio emergencial , afetando especialmente a população rural, as regiões Norte e Nordeste, a população negra e as mulheres.
Para desvendar o cenário atual e refletir com responsabilidade sobre o tema, no entanto, é necessário ir a fundo e conhecer as diferentes compreensões sobre esse flagelo que ameaça e tira dignidade de tantos brasileiros e brasileiras. Afinal, a fome não tem um só retrato, e é extremamente necessário entender suas diversas faces.
A imagem mais forte que se tem em mente é a dos famélicos, geralmente vítimas de guerras ou catástrofes naturais e que em grande número são levados à morte por absoluta inanição. Reporta-se principalmente para os registros das duas guerras mundiais ou para as tragédias humanitárias ocorridas na África. No Brasil, fica a cena das vítimas da grande seca do Nordeste no início do século passado. Em 1932, por exemplo, quando forte estiagem castigou o Ceará, chegaram a ser estabelecidos sete dos chamados “campos de concentração da seca”, em que milhares de retirantes que tentavam chegar à capital foram retidos e morreram vítimas de fome, sede e doenças.
A fome ocupa os corpos da extrema pobreza, quase sempre negra ou indígena ou de outras miscigenações excluídas
Essa terrível imagem dos famélicos persistiu mesmo com o fim desses campos, quase sempre associada a migrantes de um Brasil rural nordestino que se dirigiam ao Sudeste. Esse retrato está descrito na obra de Josué de Castro, em “Geografia da fome” (1946) e “Geopolítica da fome” (1952), que apontaram para algo que até então não constava no debate: a fome como resultado do desnível social, produzida pela ação dos próprios homens e não apenas determinada por situações que acontecem sem a intervenção humana. Igualmente inovador foi seu alerta para o que chamou de fome oculta, resultado de uma alimentação deficiente em proteínas, sais minerais e vitaminas.
Com as novas faces do problema, caem velhas máscaras. A partir da segunda metade do século passado, o país se industrializa e cresce a população urbana. No rastro da pobreza e da desigualdade, a fome chega também nas cidades. Persiste, no entanto, a ideia de uma fatalidade à qual o país estava condenado a conviver. Só nos anos 1990 é que, diante da fragilidade e mesmo omissão do Estado brasileiro, parte importante da sociedade se organiza para agir no seu enfrentamento, com milhares de comitês autônomos formados no âmbito do que veio a se chamar “Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida”. A indiferença em relação à calamidade da fome torna-se difícil de sustentar. Quebra-se o mito da fatalidade. Politiza-se a questão. Compreende-se ser necessário que a luta contra a fome tenha a regência de políticas públicas que não apenas atuem com ações emergenciais, mas que enfrentem com efetividade a pobreza e a desigualdade. E que conte com a inestimável participação da sociedade, de forma propositiva e com capacidade para o monitoramento dessas políticas.
No enfrentamento da fome, então, novas percepções se impõem. Alarga-se a sua identificação. Não se trata mais apenas dos famélicos já aqui descritos. A fome ocupa os corpos da extrema pobreza. A fome é quase sempre negra ou indígena ou de outras miscigenações excluídas. E já não se identifica apenas pela magreza, mas também é aquela fome oculta que Josué de Castro alertou e que pode ser configurada inclusive entre os que estão obesos, mas profundamente desnutridos. A fome expressa de forma radical a negação do direito à própria vida. Nega a dignidade humana, quando alguém para comer recorre à busca de alimentos no lixo ou até mesmo a pequenos furtos.
“Qual é o quadro atual?”, já nos questionávamos antes mesmo da pandemia. E a notícia já não parecia mesmo ser boa. Desde 2017, a ActionAid vem alertando que a soma das desigualdades da sociedade brasileira com o crescimento do desemprego e os cortes nos programas sociais apontavam para um preocupante aumento da fome. Agora, os dados do IBGE confirmaram essa suspeita. Com a crise agravada pela pandemia, especialistas — como o ex-diretor-geral da FAO (agência da ONU para a erradicação da fome e combate à pobreza) José Graziano da Silva — estimam que, em julho de 2020, os números de insegurança alimentar grave chegariam a 6,6% da população brasileira, com cerca de 15 milhões de pessoas passando fome. É fundamental ressaltar, entretanto, que a crise político-econômica que se aprofundou a partir de 2015 gerou e vem gerando forte impacto sobre os mais pobres, pelo crescimento do desemprego, pela perda de direitos trabalhistas e pela queda nas rendas domiciliares. Paralelamente a isso, reduções orçamentárias dos programas de segurança alimentar e assistenciais vêm desativando mecanismos de proteção social não só necessários, mas essenciais, nessa difícil conjuntura.
“E o que pode ser feito?”, também nos perguntamos. Antes de qualquer atitude, é importante que governos e sociedade reconheçam a fome como uma questão coletiva, real, em suas diferentes esferas. É fundamental compreender que a extrema pobreza é o ponto de partida dos elementos causadores da fome. E seu enfrentamento deve se dar em duas frentes simultâneas. A primeira delas, na atuação junto às políticas públicas de segurança alimentar e nutricional e àquelas que propiciem renda para os mais pobres. Mas a intervenção da sociedade pela garantia e extensão desse direito a todos também deve ser permanente. Em um contexto sempre tão complexo como a realidade brasileira, o papel do apoio social não significa pouco, seja fortalecendo iniciativas virtuosas que hoje ocorrem em diferentes territórios — muitas delas que testemunhamos e apoiamos por meio do trabalho da ActionAid —, ou mesmo apoiando campanhas que contribuem para atenuar o problema. Apesar de correr sérios riscos, o Brasil não precisa voltar a estampar o Mapa da Fome. Já provamos que, juntos, podemos superar essa questão.
Francisco Menezes é analista de políticas da ActionAid no Brasil e ex-presidente do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional).