A filantropia, no Brasil, aciona um imaginário muito mais de assistencialismo do que de ferramenta para fortalecimento e apoio a organizações e movimentos da sociedade civil. No entanto, ela pode, e deve ter, um papel essencial no fomento à justiça social ao fortalecer a sociedade civil na promoção do acesso aos direitos, ponto fundamental para a consolidação da democracia.
A filantropia brasileira, predominantemente composta por empresas, institutos e fundações por eles criados, é um setor de muita relevância por sua capacidade de mobilização de recursos. Em 2020, o setor mobilizou R$ 6,9 bilhões para o campo social, segundo o último Censo GIFE – pesquisa bianual que fornece um panorama sobre volume de investimento, estrutura e formas de atuação de empresas, institutos, fundações e fundos filantrópicos empresariais, familiares e independentes que destinam recursos privados para projetos com finalidade pública.
Apesar de o Censo apontar que o volume de repasses a terceiros dobrou nos últimos anos, somente 16% dos investidores sociais são essencialmente financiadores, promovendo repasse de recursos a terceiros. Já 50% deles são executores, ou seja, viabilizam iniciativas próprias, direcionando a maior parte dos recursos para programas desenhados e operacionalizados por equipes próprias ou por terceiros. O restante dos investidores sociais tem atuação híbrida entre essas duas estratégias.
Existe, portanto, um vácuo no financiamento a iniciativas da sociedade civil, já que os recursos da filantropia brasileira não chegam em profusão às organizações sociais. Situação que afeta principalmente instituições de pequeno e médio porte e grupos comunitários de base, particularmente aqueles que trabalham nas áreas de defesa de direitos, direitos humanos, justiça social e desenvolvimento comunitário.
O mesmo Censo GIFE confirma esta tendência, apontando que as organizações que atuam no campo do ISP (Investimento Social Privado) destinam suas doações predominantemente para as áreas de educação (76%); proteção, assistência e desenvolvimento social (75%) e desenvolvimento econômico, trabalho e empreendedorismo (67%). Apenas 5% das organizações filantrópicas associadas ao GIFE destinam recursos diretos para iniciativas voltadas para a questão racial; 9% para mulheres; 3% para populações LGBTQIAP+ e 4% para pessoas com deficiência.
A filantropia, no Brasil, aciona um imaginário muito mais de assistencialismo do que de ferramenta para fortalecimento e apoio a organizações e movimentos da sociedade civil
A doação de recursos financeiros – grantmaking– para organizações e iniciativas da sociedade civil tem se mostrado, antes, durante e no pós-pandemia, um dos caminhos relevantes para contribuir com o seu fortalecimento e, certamente, os fundos temáticos, comunitários e fundações comunitárias que integram a RJFS ( Rede de Filantropia para a Justiça Social ) ocupam um lugar estratégico no apoio à luta pelo reconhecimento e acesso a direitos, num sentido amplo, conduzidas pelos grupos, coletivos e movimentos junto à minorias políticas.
O surgimento dos fundos locais independentes a partir dos anos 2000 implicou um processo de transformação não apenas da filantropia brasileira, mas também da sociedade civil, porque eles se instalaram como uma alternativa efetiva de financiamento e fortalecimento de pequenas e médias organizações e de movimentos que atuam no campo da justiça social e desenvolvimento comunitário.
Entre os fundos da RFJS, que defendem agendas diversificadas e interconectadas nesses campos, existe o entendimento comum de que apoiar organizações da sociedade civil e movimentos sociais é uma estratégia crucial para fortalecer a sociedade civil brasileira, já que promover o acesso aos direitos —ter o direito aos direitos — é o ponto de partida fundamental para a consolidação da democracia.
A sua capacidade de apoiar causas estratégicas, de entender o cenário e as agendas prioritárias, de dar respostas rápidas, e a sua capilaridade e alcance de atuação representam estratégias inovadoras. Desde o momento da fundação de cada um dos fundos integrantes da Rede até o ano de 2020, foram repassados R$ 472 milhões para iniciativas da sociedade civil. As doações realizadas pelas organizações que integram a RFJS implicam o repasse de recursos para as bases, isto é, uma vez doados, são geridos por lideranças, coletivos e organizações sociais de natureza diversa.
Hoje fazem parte da RFJS 16 organizações entre fundos temáticos, comunitários e fundações comunitárias, e ela atua buscando promover e diversificar a cultura filantrópica no Brasil, com vistas a garantir e ampliar os recursos para os direitos humanos e para a justiça social, para apoiar projetos transformadores, fortalecendo as lutas de organizações e movimentos por meio da união de forças voltadas a promover dinâmicas coletivas de criação do comum.
A Rede tem como um dos pilares centrais de sua atuação um programa de incidência, que tem a finalidade de promover a atuação coletiva e em rede para a construção conjunta de estratégias e narrativas, a produção e o compartilhamento de conhecimento que possam impulsionar e posicionar a agenda da filantropia comunitária e de justiça social nos ecossistemas filantrópicos brasileiro e internacional, ampliando práticas de grantmaking e a cultura de doações em prol de grupos, coletivos, movimentos, lideranças e organizações da sociedade civil comprometidas com esses campos de atuação.
Esse modo de fazer filantropia busca também promover uma mudança nos ecossistemas filantrópicos, promovendo um giro decolonial no campo, questionando as práticas tradicionais e hegemônicas que pretendem determinar quais agendas locais são relevantes, que movimentos merecem ser apoiados, que soluções são as melhores e como essas devem ser relatadas, além de mudar a forma como se doa e ampliar as práticas de grantmaking, observando as organizações e territórios que recebem apoio financeiro como agentes ativos da transformação, reconhecendo os ativos das comunidades em busca de soluções próprias para os problemas existentes na construção de um bem comum maior.
Para refletir sobre esse modo de fazer filantropia e suas práticas, organizações da sociedade civil, do campo da filantropia e da justiça social se reúnem nos dias 20 e 21 de setembro, em São Paulo, durante o Seminário Filantropia, Justiça Social, Sociedade Civil e Democracia.
O evento marca os dez anos da RFJS e reúne público interessado em desenvolver, cada vez mais, uma filantropia que impulsiona a transformação realizada pela sociedade civil. Que busca garantir o acesso a direitos, o fortalecimento da sociedade civil e a consolidação da democracia.
Ampliar as vozes, os modos de ver, de se desenvolver, rejeitando a perspectiva colonial, é um movimento que vem se plasmando e ampliando em várias partes do mundo. E cada vez mais em rede. É chegada a hora da filantropia se integrar de modo contundente a esse quadro e contribuir, cada vez mais, para a real transformação social.
Graciela Hopstein é coordenadora executiva da Rede de Filantropia para a Justiça Social. Mestra em educação pela UFF (Universidade Federal Fluminense) e doutora em política social pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Consultora, professora e pesquisadora na área social. Autora de artigos e livros com temáticas vinculadas a políticas públicas, movimentos sociais e filantropia.
Mônica C. Ribeiro é consultora da Rede de Filantropia para a Justiça Social. Jornalista e mestre em antropologia, trabalha com comunicação estratégica nas áreas de filantropia, economia solidária, negócios de impacto, meio ambiente e políticas públicas, e não raro em intersecções entre elas.