A construção de uma economia solidária para superar a crise

Debate

A construção de uma economia solidária para superar a crise
Foto: Ueslei Marcelino/Reuters

Valmor Schiochet


10 de julho de 2020

A pandemia reafirma a necessidade de reestruturação do atual sistema produtivo, e as experiências recentes da economia solidária têm muito a contribuir

As consequências da pandemia do novo coronavírus têm suscitado questionamentos sobre a experimentação conduzida no campo da economia solidária em décadas recentes, no sentido de estabelecer práticas produtivas mais alinhadas à justiça social e à preservação do meio ambiente. Cabe indagar, portanto, sobre as contribuições que essa aprendizagem histórica pode trazer para a necessária reconstrução societária frente à crise atual.

Em primeiro lugar, é preciso considerar que a economia solidária não constitui um sistema social apartado do sistema societário hegemônico. É um amplo processo de experimentação desenvolvido nas zonas periféricas que denuncia os efeitos destrutivos, em termos humanos e ambientais, da sociedade hegemônica, mas que ao mesmo tempo é afetado pela sua dinâmica e suas crises.

É o que podemos constatar no contexto atual. A economia solidária é um modelo que privilegia interações “face a face”, ou seja, é uma economia feita de pessoas para as pessoas, que depende do encontro delas para produzir, trocar e consumir. As exigências do isolamento social como principal medida de contenção da covid-19 interditaram as possibilidades de encontro e comprometeram a continuidade desses processos socioeconômicos. Isso pode ser observado em inúmeras situações, como no caso das atividades de reciclagem desenvolvidas pelas cooperativas e associações de catadores. Nos processos em que a produção é familiar e autônoma, os laços interrompidos foram com o mercado, seja ele institucional, justo ou convencional. Com a suspensão das aulas escolares e outras atividades governamentais, as associações e cooperativas da agricultura familiar, assentamentos e comunidades tradicionais produtoras de alimentos não puderam comercializar seus produtos para os programas de alimentação. O mesmo aconteceu com o fechamento dos espaços fixos de comercialização e as feiras. Também temos a situação da cultura, que ficou impossibilitada de realizar atividades e apresentações públicas. Enfim, o distanciamento provocou a interrupção dos fluxos da economia solidária e fez com que trabalhadores passassem a depender de outras fontes de renda, a exemplo do auxílio emergencial.

Mas a crise da economia solidária é anterior à pandemia. Esse modelo — assim como o conjunto das classes que vivem do trabalho e as periferias — já estava sofrendo com a ascensão do ultraneoliberalismo e do populismo autoritário, que lançou as camadas populares a sua própria sorte, aprofundou a desigualdade e desmontou as incipientes estratégias políticas da proteção da natureza.

No entanto, a crise do coronavírus não coloca em xeque a economia solidária da mesma maneira como o faz com a economia dominante, suas ideologias reacionárias e políticas autoritárias. Ao contrário, ela reafirma a necessidade, a urgência e oportunidade para a construção de um novo sistema econômico, ao qual a experiência recente da economia solidária tem muito a contribuir.

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