A normalidade impossível: o contraponto das sociedades indígenas

Debate

A normalidade impossível: o contraponto das sociedades indígenas
Foto: Bruno Kelly/Reuters

Pedro de Niemeyer Cesarino


07 de maio de 2020

Um estado permanente de quarentena, o distanciamento tomado como recurso para fugir dos males que acompanham a mercadoria, tudo isso aponta para uma maneira singular de conceber o tempo e sua relação com o bem viver

A atual pandemia da covid-19 tem causado um estado de crise que provavelmente se tornará constante, apontando para uma crescente padronização da precariedade e das ruínas da civilização global. A bem dizer, o fim de tal civilização é constitutivo de sua própria fundação, assentada no crime do saque dos direitos da maioria por uma minoria.

Talvez seja esse crime que dá ao colapso civilizatório não o aspecto de uma mudança abrupta, mas sim de uma lenta repetição fractal de padrões de destruição, como sustentam Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro. Afinal, um preço haveria de se pagar pelo império da monocultura, pela produção desenfreada de parafernálias materiais e seus impactos infinitos sobre o sistema ecológico e social do planeta. Cada vez se torna mais clara a contradição entre os anseios do planejamento e o seu progressivo desmantelamento por um agente microscópico. Afinal, basta a mutação desenfreada de um vírus de alto contágio (derivado justamente da falta de planejamento de um sistema produtivo excessivamente planejado) para que o edifício do mercado global comece a desabar.

O que poderia ser mobilizado como referência para refletir sobre os atuais impasses? Neste momento, torna-se impossível deixar de pensar em quem só entrou na rede de produção global à força, o que é o caso dos povos indígenas. Embora contemporâneos, tais coletivos são ainda considerados como sobreviventes do passado quando, na realidade, deveriam ser tratados como indicadores de um futuro possível. Em que estaria essa contribuição para um tempo porvir? O pensador Ailton Krenak ofereceu pistas em uma reflexão brilhante: ao ser perguntado sobre o que é mito, Krenak, incomodado com tal palavra, disse que ele poderia ser definido como “um tempo em que não havia a angústia da certeza”. Essa angústia leva o mundo industrializado a controlar os fluxos e as conexões produtivas, a fabricar tecnologias de alto impacto e a impor gastos energéticos exorbitantes que sinalizam seu domínio sobre o planeta. Afinal, o que fariam se a incerteza fosse, ao contrário, a regra; se a precariedade se tornasse uma constante; se a incapacidade de predizer e de homogeneizar fosse a característica de nosso tempo?

Os povos indígenas, além de serem sobreviventes de diversos holocaustos, são também especialistas em fazer o trabalho de negociação com o mundo não humano que o capitalismo global negligencia. Na verdade, os holocaustos a que foram submetidos são derivados das mesmas razões pelas quais epidemias se proliferam: a imposição de uma forma de produção e de controle às custas de corpos humanos e não-humanos. Poderíamos até dizer que o genocídio indígena (e negro) inaugura essa forma de produção. Afinal, não fosse o saque de corpos, de riquezas e de territórios alheios, ensinava Claude Lévi-Strauss, a civilização ocidental jamais teria conquistado aquilo que ela arrogantemente considera como fruto de seu próprio desenvolvimento.

Ao contrário de aprender com a versatilidade tecnológica, com a capacidade de manejo e de conexão com a diversidade até hoje definidora dos povos indígenas, o que se faz e se fez é tratá-los com desdém e negá-los a possibilidade de algum protagonismo. Além de não orientarem seus mundos para a criação desenfreada de bens supérfluos, para a poluição, para a exploração econômica e para a replicação de subjetividades vazias, os povos indígenas, além do mais, possuem também “um saber acumulado do potencial patogênico dos animais”, lembra a antropóloga Els Lagrou. Ao pressupor que animais são potencialmente sujeitos, e não meros objetos submetidos à otimização técnica e financeira, caçadores e xamãs sabem ser necessário negociar e equilibrar o consumo de seus corpos, a fim de que não sejam retaliados sob a forma de doenças. Mais do que isso, eles sabem também que tal negociação implica na permanência da própria floresta, considerada como a morada dessa miríade de subjetividades oculta sob a pele dos animais.

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