O sarampo do tempo de meu avô: memórias do etnocídio na pandemia

Debate

O sarampo do tempo de meu avô: memórias do etnocídio na pandemia
Foto: Carlos Fausto/Arquivo pessoal

Carlos Fausto


24 de abril de 2020

Os povos originários do Brasil conhecem bem essa história. Desde o início da colonização, tiveram que aprender em seus corpos o que é uma epidemia

Há duas semanas Kanari Kuikuro me ligou de Canarana, pequena cidade ao sul da Terra Indígena do Xingu, onde mora com mulher e muitos filhos:

— Oi, pamü (primo), estamos com medo. Queríamos voltar para aldeia, mas agora está tudo fechado.

— Pamü, não pode arriscar, vocês só podem voltar se fizerem quarentena. É uma doença grave.

— Eu sei, pamü, é como o sarampo do tempo de meu avô Agatsipá.

Conheci Agatsipá já bastante idoso, mas ainda com inteligência viva e os olhos brilhantes. Era um grande narrador de mitos e memórias. Teve vida longa. Sobreviveu a vários surtos e epidemias que vitimaram a população do Alto Xingu durante o século 20. A epidemia de sarampo de 1954 é a mais lembrada dentre elas. Foi aguda e veloz, vitimando famílias inteiras, sem que houvesse tempo para enterrar direito os mortos. Quando todos estavam doentes, não havia quem pudesse providenciar a comida, muito menos dispor dos corpos. É nessa hora que os urubus se aglomeram e as pessoas se espalham, levando a doença para outras partes.

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