A longa institucionalização democrática chilena

Debate

A longa institucionalização democrática chilena
Foto: Ivan Alvarado/Reuters - 17.nov.2020

Gianfranco Caterina


16 de novembro de 2021

Demandas dos ciclos de protestos sociais das últimas duas décadas só podem ser atendidas por meio de uma nova Constituição

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O golpe de Estado de 11 de setembro de 1973 é um dos eventos mais traumáticos da história do Chile. Com uma violenta tomada de poder que incluiu o bombardeio do palácio presidencial, uma junta militar, liderada pelo general Augusto Pinochet, assumiu o comando do país. O Congresso foi fechado, a coalizão de esquerda que governava o país foi banida e os outros partidos políticos colocados em recesso – até serem oficialmente proscritos em 1977. Seguiram-se expurgos na administração pública, universidades e Forças Armadas, além de censura e abertura de campos de detenção.

Menos de duas semanas após o golpe, o governo nomeou uma comissão de juristas para redigir um anteprojeto de Constituição. Após tentativas fracassadas de aumentar a legitimidade da empreitada nos anos subsequentes, o grupo entregaria sua proposta de Constituição à junta militar em outubro de 1978. Em seguida, um comitê foi designado para produzir a versão definitiva que se tornou conhecida em agosto de 1980. Após ser aprovada em um plebiscito com o país sob estado de emergência e com irregularidades eleitorais, a Constituição de 1980 entraria em vigor com disposições transitórias que mantinham os estados de exceção e a proscrição dos partidos políticos. A Carta tinha forte ingrediente anticomunista ao promover a luta contra o “inimigo interno” e consagrava as Forças Armadas com maior autonomia administrativa e significativo grau de ingerência política. Além disso, estabelecia que assuntos normativos das Forças Armadas, partidos políticos, eleições e educação (entre outros) seriam regulados por meio de Leis Orgânicas Constitucionais, que necessitavam de uma maioria de 4/7 para serem reformadas. A Constituição incluía restrições aos partidos políticos e sindicatos, limitações às liberdades de imprensa e expressão, e distorcia a representação política ao combinar senadores nomeados com o sistema eleitoral direto. Esse sistema, conhecido como binomial, estabelecia distritos que elegeriam dois representantes legislativos cada, tornando quase impossível o surgimento de uma terceira força fora das grandes coalizões. É importante lembrar, no entanto, que, na prática, entre 1980 e 1988, os chilenos tiveram as disposições transitórias da Constituição de 1980 como Carta Magna. Essas normas delimitavam um período presidencial de oito anos para Pinochet (até março de 1989) e assinalavam que a Junta deveria apresentar um candidato (que seria o próprio Pinochet) por um novo período de oito anos em 1988. Em outubro de 1988, no entanto, o “Sim”, favorável à continuidade do regime, foi derrotado ao obter 43% dos votos contra 54,7% do “Não”. Esse resultado foi fundamental para desencadear o retorno à democracia com realização de eleições presidenciais e parlamentares em dezembro de 1989.

Desse modo, reformas constitucionais negociadas entre o regime e as forças políticas democráticas em ascensão já seriam ratificadas via plebiscito em julho de 1989. Elas estabeleciam a defesa dos direitos humanos como um dever do Estado – o que abria a possibilidade de ações judiciais por violações de direitos humanos –, igualavam o número de representantes civis e militares e limitavam as atribuições do Conselho de Segurança Nacional, além de aumentar o número de senadores eleitos, de modo a diminuir a influência dos nomeados. Ademais, foi aprovada uma norma transitória que possibilitava que o presidente indultasse presos políticos acusados de atos terroristas durante o governo militar. Além disso, também foram restabelecidas as eleições diretas para prefeitos e vereadores e a redução do mandato presidencial de oito para seis anos. Entretanto, certas restrições à liberdade de imprensa e a censura cinematográfica permaneceram intocadas. As reformas foram aprovadas via plebiscito com 91,7% dos chilenos a favor das mudanças. Na eleição presidencial de 1989, o democrata-cristão Patricio Aylwin, candidato da coalizão de centro e centro-esquerda , sairia como vencedor com 55% dos votos.

Parte dos chilenos busca um novo pacto social no qual o Estado tenha um papel central na garantia de direitos das mulheres, minorias e de acesso à educação, saúde e previdência

Mudanças ainda mais significativas viriam com as reformas de 2005 realizadas durante a presidência do socialista Ricardo Lagos (2000-2006). O sistema binomial seria substituído pelo proporcional a partir de 2015 – a mudança ocorreria nas eleições parlamentares de 2017. Além disso, os cargos de senadores nomeados e vitalícios seriam extintos. O papel fiscalizador do Congresso foi fortalecido com a aprovação de sua capacidade de criar comissões de investigação e de convocar ministros para esclarecimentos. O mandato presidencial seria reduzido de seis para quatro anos sem reeleição. Por fim, avanços institucionais importantes na subordinação militar ao poder civil democrático foram registrados.

A insatisfação, no entanto, prosseguiu. Já em 2006, estudantes secundaristas saíram às ruas em protesto contra a má qualidade da educação e seu nível de segregação. Cinco anos depois, novos protestos de larga escala teriam início nas universidades, com paralisação dos centros de educação pública demandando educação gratuita e de qualidade. Ao mesmo tempo, outras bandeiras começariam a aparecer nos protestos: direitos dos povos indígenas, direitos das mulheres e LGBTI+, meio ambiente e oposição ao sistema previdenciário herdado da ditadura. Sublinha-se que essas movimentações crescentes ocorreram à margem dos partidos políticos, com a insatisfação atingindo seu ápice em outubro de 2019, com o chamado estallido social – evento-chave para a instalação de uma Convenção Constituinte em julho deste ano. O ponto fulcral é que certas demandas só seriam atendidas por meio de uma nova Constituição, já que movimentos para criar um sistema universal de saúde, previdência ou um Estado plurinacional, por exemplo, podem ser declarados inconstitucionais, de acordo com o ordenamento jurídico atual. Parte dos chilenos busca um novo pacto social no qual o Estado tenha um papel central na garantia de direitos das mulheres, minorias e de acesso à educação, saúde e previdência. É isso que está em jogo nos trabalhos atuais da Constituinte.

Gianfranco Caterina é pós-doutorando no Instituto de Relações Internacionais da USP e membro do ODEC-USP (Observatório da Democracia no Mundo da Universidade de São Paulo). É doutor em história pelo CPDOC/FGV (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas).


Este texto é parte de uma série em que especialistas analisam o processo que culminou na assembleia constituinte chilena e como ela é afetada pelas eleições presidenciais, uma parceria entre o Nexo e o ODEC-USP (Observatório da Democracia no Mundo da Universidade de São Paulo).

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