Entrevista

Qual o papel do povo e dos militares nas revoluções africanas

João Paulo Charleaux

26 de abril de 2019(atualizado 28/12/2023 às 12h59)

Pesquisadora argelina Samia Chabouni fala ao ‘Nexo’ sobre as recentes transformações políticas em seu continente e o slogan da ‘Nova Primavera Árabe’

O Nexo depende de você para financiar seu trabalho e seguir produzindo um jornalismo de qualidade, no qual se pode confiar.Conheça nossos planos de assinatura.Junte-se ao Nexo! Seu apoio é fundamental.

Temas

Compartilhe

FOTO: BENOIT TESSIER/REUTERS – 07.04.2019

Protesto Argélia

Membros da comunidade argelina em Paris protestam contra Bouteflika

No intervalo de nove dias – entre 2 e 11 de abril de 2019 – três países africanos deram início a movimentos que podem resultar em profundas mudanças políticas.

Primeiro, no dia 2 de abril, Abdelaziz Bouteflika , que governou a Argélia por 20 anos, renunciou em meio a uma onda de protestos populares pacíficos.

Em seguida, no dia 4 de abril, o marechal rebelde Khalifa Haftar deu início a uma ofensiva militar para depor seu adversário Fayez al-Sarraj na Líbia, numa tentativa de reunificar politicamente o país, dividido desde a queda do longevo Muammar Gaddafi – assassinado em 2011 depois de ter passado 42 anos no poder.

Por fim, no dia 11 de abril, Omar al-Bashir , que governou o Sudão por 30 anos, foi deposto após quatro meses de protestos populares.

A sucessão de eventos políticos dramáticos fez com que muitos analistas internacionais falassem numa “ nova Primavera Árabe ”. A expressão se refere à série de manifestações populares que terminaram com a deposição de líderes no Egito, na Tunísia, na Líbia e em outros países da África e do Oriente Médio, a partir de 2010.

A esse respeito, oNexo entrevistou por e-mail, na sexta-feira (26) a argelina Samia Chabouni , professora de ciência política e de relações internacionais na Universidade de Jijel e pesquisadora do centro de estudos africanos chamado Thinking Africa .

Chabouni, que é especialista em transições democráticas no continente africano, é relutante em colocar eventos políticos tão diversos sob um mesmo guarda-chuva.

Nesta entrevista, ela fala dessas especificidades, mas também dos elementos que existem em comum entre países que compartem histórias semelhantes de colonização, descolonização, ditaduras e revoluções. Ela também chama a atenção para o protagonismo dos militares nesses processos – na linha de frente ou nos bastidores – e dos riscos de que esses protestos populares exitosos sejam sequestrados pelas Forças Armadas.

Por que os militares são protagonistas tão importantes na vida política dos países africanos?

Samia Chabouni A formação do Estado-nação na África tem suas especificidades. Eles são fruto de processos de descolonização. Nesses países, primeiro constituiu-se o Exército, depois o Estado. Isso explica a preponderância dos militares sobre os políticos.

A formação da maior parte desses exércitos é resultado de movimentos de libertação nacional, como por exemplo na Argélia, em Moçambique, em Guiné-Bissau, em Angola e em Camarões. São exércitos que nasceram de lutas populares e terminaram em luta armada.

Na Argélia, o Exército Nacional Popular [Forças Armadas regulares do Estado argelino hoje] é herdeiro do Exército de Libertação Nacional [movimento de resistência à colonização francesa]. O poder constituiu-se portanto sobre a legitimidade histórica desse movimento de libertação. Após a independência da França, em 1962, o regime argelino foi todo construído em torno da Frente de Libertação Nacional, cujo braço armado era o Exército de Libertação Nacional.

Portanto, os exércitos africanos intervêm na política porque foi por meio deles, ao redor deles e graças a eles que esses Estados se constituíram.

Mesmo depois dos processos de transição democrática ocorridos no continente, já no fim dos anos 1980 e no início dos anos 1990 – muitos dos quais acompanhados por guerras civis – há países que se reconstruíram justamente a partir da luta de movimentos armados que combateram ditaduras existentes. Nesse sentido, o caso de Ruanda pós-genocídio [1994] é exemplar. Lá, a Frente Patriótica Ruandesa, que passou a dominar a vida política local desde então, lutou contra o regime ditatorial de Juvénal Habyarimana, que foi responsável pelo genocídio.

FOTO: RAMZI BOUDINA/REUTERS – 09.04.2019

Manifestante_argelino

Manifestante e policiais na frente do Parlamento argelino, em Argel

As recentes manifestações e mudanças políticas ocorridas na Argélia podem ser consideradas uma consequência da Primavera Árabe de 2010-2011?

Samia Chabouni É difícil comparar as duas coisas. Esses processos envolvem singularidades. A Argélia tem suas especificidades históricas. Primeiramente, o país já havia vivido suas próprias primaveras antes de 2010, como numa série de protestos entre 1980 e 1986 [que pediam o reconhecimento da identidade e da língua berbere diante da língua francesa derivada do processo de colonização], em 1988 novamente [quando uma onda de protestos de jovens estudantes foi interrompida por uma política repressiva que deixou mais de 500 mortos] e novamente em 2011 [nas maiores manifestações até então contra o governo, que terminaram com a proibição total de protestos de rua no país].

Outra diferença em relação à Primavera Árabe é que o movimento em curso na Argélia é pacifista. Não houve destruição ou violência, a tal ponto que o movimento social argelino foi visto como um modelo aos olhos da comunidade internacional.

Dito isso, caso o movimento atual atinja seus objetivos, ele poderá ter impacto positivo sobre todo o norte da África, constituindo um vetor de mudança, renovando o Grande Magrebe [que abarca Marrocos, Argélia, Tunísia, Mauritânia e Líbia] e reduzindo as tensões na região.

Esse movimento tem a capacidade de propor um modelo que aporte algo à transição democrática, abrindo caminho para uma primavera mais “africana” e para novas estratégias de liberação também, que certamente levarão tempo, mas ocorrerão de baixo para cima.

Há o risco de que os protestos pela queda de Bouteflika e por mudanças políticas na Argélia tenham o mesmo fim que tiveram no Egito pós-Primavera Árabe, onde o movimento acabou sequestrado pelos militares?

Samia Chabouni Depois da independência, em 1962, o poder sempre esteve nas mãos dos militares na Argélia. Esse garrote tem raízes na verdade no final dos anos 1950. Portanto, os militares são algo decisivo na vida política argelina. São eles que detêm a chave do poder, se sobrepondo ao Estado.

No tempo em que esteve no poder, Bouteflika desenvolveu uma relação clientelista importante entre a presidência e o Exército. Em 20 anos, formou-se um sistema mafioso marcado por laços político-financeiros entre esses dois atores, de tal maneira que é difícil saber quem detém o poder e quem governa realmente, pois o governo Bouteflika fez-se um híbrido político-militar.

Na fase atual, existe sim o risco de que os militares assumam a transição política na Argélia. Efetivamente, eles tentam roubar a vitória que o povo argelino obteve. Eles vêm ajustando o discurso: no começo alertavam para o risco das manifestações, mas depois passaram a incorporar mensagens mais pró-povo, até que, quando a mudança já parecia inevitável, eles mesmos evocaram um artigo da Constituição, o 102, para retirar Bouteflika. Com isso, confiscaram eles mesmos o poder, confiscando no fundo uma vitória popular e trabalhando para perpetuar o próprio sistema. [Abelkader] Salah [vice, de 77 anos, que assumiu o lugar de Bouteflika e deve convocar novas eleições até junho] quer manter a hegemonia militar. E a deposição constitucional de Bouteflika foi a forma encontrada para não caracterizar a mudança ocorrida como um golpe de Estado.

Neste momento, o processo está atravancado. Os militares tentarão continuar tendo uma voz ativa. O desafio é dar voz aos civis, mas sabemos que levará tempo até que os militares se retirem da vida política.

Que papel as antigas potências coloniais desempenham nas dinâmicas políticas, econômicas e sociais de suas antigas possessões, como no caso da França com a Argélia?

Samia Chabouni Mesmo depois dos processos de independência, as antigas potências coloniais mantiveram a influência sobre suas antigas possessões, e isso é especialmente verdadeiro no que diz respeito às ex-colônias francesas. A França tem uma grande influência na África. Mesmo depois dos processos de independência, 12 países africanos assinaram acordos secretos de defesa com a França, o que permite aos franceses manterem uma presença militar física nesses países.

No caso da Argélia, as relações com a França são peculiares, e estão ligadas à memória da guerra de libertação. Há laços de sangue, laços históricos, políticos, econômicos, enfim, de todos os tipos. A França é o principal parceiro econômico da Argélia.

De maneira geral, o papel da França foi nefasto. Os interesses econômicos da França foram garantidos mesmo após a independência. Todos os contratos assinados desde então são favoráveis a essa antiga potência colonialista, que não apenas se beneficia da riqueza e do dinheiro argelino, como também de seu capital humano, uma vez que a diáspora argelina para a França é muito importante. Mais de 15.000 médicos argelinos, por exemplo, estão hoje na França.

Todos os presidentes argelinos governaram sob o guarda-chuva da França, com exceção de Mohammed Boudiaf, que terminou assassinado num episódio em que os franceses estiveram implicados [ele foi vítima de uma granada lançada enquanto participava de uma conferência pública].

A França sempre apoiou Bouteflika, tirando muitos benefícios disso. Dá a impressão de que o dia 1º de novembro de 1954 nunca terminou [data que marcou o início da guerra de libertação nacional da Argélia, a partir da qual passaram a ocorrer enfrentamentos abertos e uma série de atentados] e nós esperamos ainda por algum movimento que leve a uma libertação nacional total e definitiva não apenas da Argélia, mas de todo o continente africano que ainda sofre com a ideia da “França-África” e com a influência das grandes potências e de certos países emergentes.

NEWSLETTER GRATUITA

Nexo | Hoje

Enviada à noite de segunda a sexta-feira com os fatos mais importantes do dia

Este site é protegido por reCAPTCHA e a Política de Privacidade e os Termos de Serviço Google se aplicam.

Gráficos

nos eixos

O melhor em dados e gráficos selecionados por nosso time de infografia para você

Este site é protegido por reCAPTCHA e a Política de Privacidade e os Termos de Serviço Google se aplicam.

Navegue por temas