Entrevista

Qual a relação entre conflitos armados e mudanças climáticas

João Paulo Charleaux

10 de março de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h28)

Canadense Robert Muggah, que dirige o Instituto Igarapé, fala ao ‘Nexo’ sobre o impacto que o clima tem nas dinâmicas da violência em todo o mundo

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FOTO: THOMAS MUKOYA/REUTERS – 21.02.2012

Soldado queniano, em uniforme camuflado e segurando um fuzil, é fotografado debaixo para cima, contra a imagem de uma árvore de galhos secos e retorcidos

Soldado queniano em patrulha na fronteira com a Somália

Onze anos antes da eclosão dos protestos sociais que desembocaram na guerra da Síria em 2011, uma seca devastadora destruiu 85% da agricultura local. O fenômeno climático extremo é ignorado na maior parte das explicações sobre o conflito sírio, mas, para o canadense Robert Muggah , diretor do Instituto Igarapé, os dois eventos são indissociáveis, e ilustram como as mudanças climáticas se relacionam com os conflitos.

Nesta entrevista, concedida ao Nexo por escrito, naquinta-feira (4), Muggah diz que “as mudanças climáticas já estão criando as condições para o início de novos conflitos, estão intensificando os conflitos existentes e estão reacendendo antigos conflitos.

De acordo com ele, “os países que são especialmente vulneráveis estão em “zonas quentes” de mudanças climáticas mais rápidas, incluindo o Sahel e o Chifre da África. O Sahel é formado por Mauritânia, Mali, Burkina Faso, Níger e Chade. O Chifre da África, por Somália, Eritreia, Etiópia e Djibuti. Mas a América Latina – e particularmente o Brasil – não estão alheios a essa dinâmica, como ele explica na entrevista.

De que maneira as mudanças climáticas afetam os conflitos armados?

Robert Muggah As mudanças climáticas podem funcionar como um ‘multiplicador de ameaças’ para os conflitos armados. Eventos climáticos extremos, assim como mudanças graduais, podem exacerbar condições sociais e econômicas subjacentes que, por sua vez, aumentam o risco de convulsões e de violência.

Por exemplo, o aumento das temperaturas pode interromper a produção de alimentos, afetando a segurança alimentar, levando as pessoas a aderir a grupos armados. A queda na disponibilidade de água pode afetar a subsistência, forçando pessoas a migrar, o que pode derivar numa competição por recursos e em tensões. O que já está claro é que esses riscos são maiores em algumas áreas que em outras.

As ligações entre mudanças climáticas e conflitos têm sido objeto de uma intensa discussão acadêmica ao longo dos últimos dez anos. Há uma ideia bem aceita entre os acadêmicos de que as mudanças climáticas não causam conflitos por si só. Um estudo recente liderado pela Universidade de Standford [Califórnia, EUA] revisou 35 trabalhos acadêmicos e concluiu que as mudanças climáticas influenciaram entre 3% e 20% dos “riscos” de conflitos armados ao longo do último século.

140 milhões de pessoas podem migrar de maneira forçada por causa do clima até 2050

Há pelo menos três razões para isso. Primeiro, a restrição do acesso à água, à terra e ao retorno à terra [de origem] faz crescer a disputa e pode levar à violência. Em segundo lugar, essa privação também pode levar a migrações massivas – dos assim chamados refugiados climáticos – com efeitos desestabilizadores. Em terceiro lugar, a variação exacerbada do clima, com secas, inundações e ciclones, pode provocar choques econômicos e aumentar o desemprego, fazendo crescer também o recrutamento pelos grupos armados.

Em suma, há muitos fatores intervenientes que determinam a probabilidade, a duração e a intensidade de um conflito armado interno ou internacional. É importante notar que países que já são muito vulneráveis às mudanças climáticas estão mais suscetíveis do que os países que não são tão vulneráveis a essas mudanças. Hoje, 12 dos 20 países mais vulneráveis às mudanças climáticas já se encontram afetados por conflitos. Estados frágeis ou governados de maneira predatória também podem estar mais expostos, especialmente se falham em dar respostas adequadas. Além disso, países com um número muito grande de jovens desempregados ou que têm grande dependência da agricultura também podem estar mais vulneráveis que outros.

É preciso cautela, no entanto, ao estabelecer uma conexão causal muito forte. Na verdade, também há pesquisas que sugerem que as mudanças climáticas também podem fortalecer certas formas de colaboração dentro de um país ou entre países. Veja o caso dos recursos hídricos. Embora a distribuição desigual de água tenha gerado tensões entre os Estados [no sentido de países], também aumentou paulatinamente a cooperação. O diálogo interestatal e a diplomacia desencadeadas pela diminuição do abastecimento de água também podem levar à construção de confiança e de cooperação em diversas áreas. Não é inevitável que o estresse ambiental leve o mundo necessariamente a “guerras por recursos” em todas as situações.

As mudanças climáticas podem provocar novos conflitos no futuro? Quais? Onde?

Robert Muggah As mudanças climáticas já estão criando as condições para o início de novos conflitos, estão intensificando os conflitos existentes e estão reacendendo antigos conflitos. Isso ocorre porque os efeitos das mudanças climáticas são cumulativos – sucessivas perdas de safras, perda gradual d’água, aumento do nível do mar e mudanças nas rotas de pastoreio já estão presentes em grandes partes da América Central e do Sul, África do Norte e Subsaariana e partes do Sul e sudeste da Ásia. Os países que são especialmente vulneráveis estão em “zonas quentes” de mudanças climáticas mais rápidas, incluindo o Sahel e o Chifre da África.

Mapa mostra a localização do Mali no Sahel

Os países e cidades mais expostos tendem a ser os mais sujeitos às alterações climáticas São países que já sofrem com a fragilidade. Uma das áreas de maior risco, o Sahel , é uma tempestade perfeita de temperaturas em rápido aumento e chuvas irregulares, juntamente com governança fraca, rápido crescimento populacional e recursos naturais escassos.

Países extremamente pobres como Haiti [no Caribe], mas também Burundi, República Centro-Africana, República Democrática do Congo, Guiné, Libéria, Madagascar, Serra Leoa, Somália e Sudão do Sul [na África] – com populações que dobrarão nas próximas três décadas – enfrentam o risco de secas mais regulares, inundações, calor e erosão do solo, e também o risco de violência organizada.

Existem riscos semelhantes em outras partes do mundo, incluindo Afeganistão, Mianmar, Paquistão, Filipinas, Síria e Iêmen. Há uma probabilidade muito forte de que as mudanças climáticas contribuam para a eclosão não apenas de conflitos, mas também do extremismo.

Como isolar as mudanças climáticas enquanto um fator particular preponderante de conflito? Disputas por água ou por pastagens já não eram comuns antes das mudanças climáticas terem início?

Robert Muggah As mudanças climáticas parecem estar intensificando as inseguranças sociais e econômicas e contribuindo para o aumento da frequência e intensidade da violência organizada. No Sahel, por exemplo, sempre houve tensões entre agricultores e pastores. Quando os nômades moviam seus rebanhos para o sul durante a estação seca, havia tensões periódicas, embora frequentemente moderadas pelos líderes locais. No entanto, com secas mais comuns e prejudiciais, estações secas prolongadas e chuvas irregulares, as disputas se tornaram mais violentas. Em partes da Nigéria, por exemplo, cerca de cem pessoas foram mortas em tais confrontos durante as décadas de 1990 e 2000. Hoje, o número está mais próximo de 10 mil pessoas morrendo a cada ano.

FOTO: EMMANUEL BRAUN/REUTERS – 19.03.2015

Bandeira do Boko Haram

Soldados nigerianos exibem bandeira capturada do Boko Haram

A recorrência de ondas de calor extremo e de inundações repentinas e o aumento perigoso do nível do mar são fenômenos que minam as estratégias de sobrevivência nessas regiões. A perda recorrente de safras e de rebanhos pode levar famílias extremamente pobres à miséria. Além disso, a erosão constante dos sistemas ecológicos também está deslocando grupos para novas áreas, às vezes contribuindo para uma maior instabilidade.

Há sinais de que as mudanças climáticas estão contribuindo para uma ampla gama de resultados violentos – de crimes a protestos, revoltas e até mesmo conflitos armados internos e internacionais. Um dos exemplos mais citados é o da Síria, que passou por uma seca severa em meados dos anos 2000, que destruiu 85% da agricultura do país. Os distúrbios alimentares nas cidades contribuíram para a onda de repressão que deu origem à guerra civil em 2011.

Qual a situação do Brasil nesse contexto?

Robert Muggah As pesquisas sobre as relações entre as mudanças no clima e os riscos do aumento da violência organizada no Brasil são muito limitadas. No entanto, seria errado concluir que o Brasil está livre de riscos. Por exemplo, 85% da população brasileira vive em cidades, muitas delas são cidades costeiras [ 18 das 42 regiões metropolitanas do Brasil estão em áreas costeiras ou sofrem influência delas]. A maioria das cidades costeiras brasileiras está enfrentando a elevação do nível do mar, que irá gerar uma série de impactos, incluindo a migração, que pode contribuir para as tensões.

Ainda mais perigoso que isso é o aumento do calor, incluindo aí os “efeitos de ilha de calor ”, o que tornará a vida em algumas cidades – e alguns bairros – impossível. O aumento dos desastres relacionados ao clima também deve gerar reivindicações de parte da população, especialmente daqueles que vivem em condições precárias, o que, sem uma resposta adequada, pode gerar tensões.

FOTO: LUNAE PARRACHO/REUTERS – 23.05.2014

Seca da bacia do São Francisco vem de 2012

Região normalmente coberta por 6m de água do rio São Francisco completamente seca já em 2014

No Brasil, já há uma grande população de deslocados induzidos por desastres. O Instituto Igarapé identificou milhões de brasileiros deslocados por enchentes, ciclones, erosão, incêndios florestais e outros fatores ambientais desde 2000. Houve mais de 311 mil casos desse tipo apenas em 2017. Na maior parte, essa população é invisível. Mas, à medida que as temperaturas continuam a aumentar, os padrões climáticos mudam e o nível do mar aumenta, podemos esperar que uma parcela cada vez maior da população enfrente riscos.

Uma questão que surge é o que acontece quando as grandes cidades enfrentam influxos em grande escala de novas populações em busca de um terreno mais seguro. Outra questão, não tão especulativa, é o que acontece quando as cidades começam a ficar sem água?

Como o mundo se prepara para lidar com os efeitos desses novos conflitos? A categoria de refugiados ambientais será aceita? O direito internacional vai se adaptar de que maneira a essas mudanças?

Robert Muggah A comunidade internacional já está começando a perceber as relações existentes entre clima e segurança. O assunto é discutido no Conselho de Segurança das Nações Unidas desde 2007, por exemplo. Existem alguns países que desejam ser mais pró-ativos, outros que estão indecisos. Há ainda um pequeno número que teme que a questão possa se politizar e afetar suas reivindicações de soberania nacional. Mas, à medida que o amplo “ponto de inflexão” para abordar a mudança climática se firma em todo o mundo, podemos esperar um envolvimento multilateral muito mais urgente com a questão.

A maioria das agências humanitárias e das agências internacionais de desenvolvimento também estão considerando a questão da segurança climática. Organizações como o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados e o Banco Mundial estão trabalhando com Estados, empresas e sociedades civis para construir estratégias de adaptação e de mitigação. No Sahel, por exemplo, existe um programa multibilionário para construir uma “Grande Muralha Verde”, formada por dezenas de milhões de árvores em 17 países e 243 milhões de acres de terra. Há um reconhecimento crescente de que mais deve ser feito para construir resiliência nos níveis nacional e local.

A questão do deslocamento e da migração induzidos pelo clima também está em alta na agenda. As estimativas mais conservadoras do Banco Mundial estimam que as mudanças climáticas podem forçar pelo menos 140 milhões de pessoas a migrar até 2050. As regiões mais afetadas incluem a América Latina, a África Subsaariana e o Sul da Ásia.

A cada ano, milhões de pessoas já estão sendo forçadas a se mudar devido ao clima extremo. Em 2020, por exemplo, mais de 21 milhões de pessoas em 140 países foram afetadas – três vezes o número de pessoas deslocadas por conflitos armados. Países como Afeganistão, Bangladesh, Índia, Etiópia, Filipinas, Somália e Sudão foram especialmente atingidos nos últimos anos. Essas questões foram reconhecidas em uma série de processos internacionais, como a Agenda de Proteção da Iniciativa Nansen , a Estrutura de Sendai para Redução de Risco de Desastres e o Acordo Climático de Paris .

É muito provável que essa relação entre mudança climática, migração e conflito force mudanças no direito nacional e internacional. No momento, os migrantes do clima não são definidos como “refugiados” de acordo com o direito internacional e, portanto, carecem de proteção legal concedida às pessoas que podem solicitar asilo. Já existem planos em alguns países para rever a legislação aplicável aos refugiados, de maneira a incluir esta categoria ou oferecer um novo status de proteção. Por sua vez, a Assembleia Geral da ONU reconhece como “o clima, a degradação ambiental e os desastres naturais interagem cada vez mais com os impulsionadores dos movimentos de refugiados” e o Acnur [Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados], assim como a Organização Internacional para as Migrações também estão analisando o assunto .

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