Como danos ao meio ambiente levam ao surgimento de doenças
João Paulo Charleaux
29 de março de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h02)Virologista Angélica Campos fala ao ‘Nexo’ sobre a origem da covid-19 e o risco de novos vírus semelhantes se espalharem pelo mundo
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Pesquisadores manipulam morcego em pesquisa sobre a covid-19, na França
A destruição dos ecossistemas do planeta “contribui de forma decisiva para o surgimento de novas doenças” como a covid-19, que já provocou a morte de mais de 2,7 milhões de pessoas no mundo em pouco mais de um ano. A hipótese mais provável para o surgimento da doença – que o novo coronavírus passou de morcegos para o homem com a participação de um hospedeiro intermediário ainda a ser identificado – está ligada à maneira como a humanidade se relaciona com o meio ambiente.
A explicação é da virologista Angélica Cristine Góes de Almeida Campos, cuja especialidade são os vírus emergentes de morcegos, que estão na raiz da atual pandemia. Campos é pesquisadora da Plataforma Científica Pasteur-USP e atualmente trabalha como pesquisadora associada da Universidade Charité, de Berlim, na Alemanha, de onde concedeu esta entrevista ao Nexo por escrito, na quarta-feira (24).
A pesquisadora alerta que “o risco de transmissão para humanos está aumentando” conforme o avanço sobre áreas antes intocadas da natureza aumenta. “A ação do homem destruindo os diferentes ecossistemas do planeta contribui de forma decisiva no surgimento de novas doenças ou ainda no reaparecimento de doenças que já estavam há muito tempo controladas”, disse.
O assunto será tema de uma palestra virtual que Campos dará ao público franco-brasileiro num ciclo promovido pelo Consulado da França em São Paulo, no dia 30 de março, às 14h30. O evento reúne antropólogos, sociólogos, epidemiologistas, biólogos, médicos e matemáticos franceses e brasileiros para “discutir o que a epidemia tem feito aos nossos corpos, às sociedades – em particular à França e ao Brasil –, à ciência, o que nós temos feito dessa pandemia, os significados que lhe são atribuídos e as diferentes maneiras de reagir a ela”.
O ciclo é promovido em parceria com a Unesco (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura) e com os Blogs de Ciências da Unicamp, de março a dezembro de 2021. As transmissões são feitas ao vivo, online, em francês, sem legendas. Em seguida, os vídeos ficam disponíveis nos canais do Consulado da França na internet, com legendas em português.
Angélica Campos O que sabemos com certeza é que, após o sequenciamento do genoma completo do SARS-CoV-2 [causador da covid-19], foi verificada sua similaridade com outros coronavírus identificados em morcegos da China, o que sugere que provavelmente existiu um ancestral comum para o SARS-CoV-2 e os vírus de morcegos.
O vírus com maior similaridade genética ao SARS-CoV-2 foi identificado em morcegos do gêneroRhinolophus, mas os vírus SARS-CoV-1 [causador da epidemia de 2002 de Sars, a Síndrome Respiratória Aguda Grave, na sigla em inglês] e Mers [sigla para Síndrome Respiratória do Oriente Médio] estão geneticamente muito próximos ao SARS-CoV-2. Outros vírus também parecidos com o SARS-CoV-2 foram identificados em mamíferos da ordemPholidota, também conhecidos como pangolins, porém com menor similaridade, considerando o genoma completo do vírus, um genoma com 30 mil nucleotídeos.
Sendo assim, a origem exata do evento de transmissão do vírus de animais para humanos ainda não é conhecida, mas podemos afirmar que o SARS-CoV-2 tem origem na natureza e passou de morcegos para o homem provavelmente com a participação de um hospedeiro intermediário ainda a ser identificado.
Angélica Campos O mais importante é auxiliar na tomada de decisões para conter o espalhamento do vírus. O primeiro passo é o isolamento do local onde o “surto” começou. Os passos seguintes são o que realmente constroem o conhecimento científico sobre cada agente causador de doenças – sejam esses agentes vírus, bactérias ou fungos.
A China deu um exemplo de eficiência para o mundo. Apesar de os primeiros casos terem acontecido na China e de esse país contar com a maior população do mundo, o número de casos e mortes lá foi muito menor que no Brasil e nos EUA. Tudo por que ações de controle do espalhamento do vírus, como lockdown e uso de máscaras, foram implementadas bem no começo do que hoje é uma pandemia – que é uma distribuição mundial da doença e um sério problema de saúde pública.
Conhecer um agente, seus mecanismos, de onde veio e para onde vai é parte do que a ciência pode devolver à sociedade. Somente a partir do que se estudou sobre o Sars de 2002/2003 e de todo o esforço científico para entender esse vírus é que foi possível o desenvolvimento de, não uma, mas várias vacinas, de forma tão rápida, eficiente e segura.
Só a partir do estudo de como o vírus se propaga na população é que foi possível afirmar que com o distanciamento social seria factível um controle da doença. O conhecimento da origem e os passos que levaram ao surgimento desta doença emergente permite que eventos recorrentes da transmissão de SARS-CoV-2 para humanos sejam devidamente interrompidos. O entendimento do processo também permite que novas medidas de controle sejam tomadas para evitar não só a re-emergência de SARS-CoV-2, mas também de outros agentes com potencial patogênicos em humanos
Angélica Campos Aqui entramos num ponto crítico. Sim, o risco está aumentado, pois um conceito que vem sendo abordado mais recentemente, apesar de não ser novo, nos mostra que nosso planeta é um equilíbrio dinâmico. Nas últimas décadas pôde ser observada uma aceleração no surgimento de doenças emergentes, entre elas as provocadas por coronavírus – na verdade, três coronavírus, SARS-CoV-1 em 2002/03, Mers em 2012 e SARS-CoV-2 em 2019/20, além de um Influenza H1N1 em 2009. Isso sem contar os casos de zika, nipah, hendra e ebola vírus.
Área desmatada na região amazônica de Itaituba, no Pará
Isso quer dizer que o equilíbrio não é estático, parado; hora ele pende para um lado, ora pende para outro, e o planeta vai se ajustando às novas “realidades” que vão aparecendo. Sempre existiram vírus e hospedeiros: isso é um fato, por mais que pessoas de diferentes áreas – que não as áreas biológicas – não se atentem sempre. Não quero ser uma pessoa eco-chata ou ir contra as maravilhas da vida moderna – afinal, eu sou usuária da tecnologia e, como cientista, nós usamos muito de tecnologia –, mas a ação do homem destruindo os diferentes ecossistemas do planeta contribui de forma decisiva no surgimento de novas doenças ou ainda no reaparecimento de doenças que já estavam há muito tempo controladas.
O crescente aumento do contato entre humanos e animais silvestresdevido a fatores como a destruição de habitats naturais, avanço indiscriminado da pecuária e agricultura, tráfico de animais silvestres e perda da biodiversidade, além da elevada concentração de populações urbanas e a facilidade de transporte entre diferentes continentes, representam um potencial de transmissão de vírus novos (ou não) e consequentemente de novas pandemias.
Uma vez que os vírus que estavam em equilíbrio com seus hospedeiros – morcegos, por exemplo – em ambientes silvestres, são “libertados” de sua caixa de Pandora, os vírus encontram novos hospedeiros, como seres humanos ou animais de estimação, e criam mecanismos para infectar cada um deles.
Os vírus são extremamente eficientes. Aqui vale lembrar que a culpa é nossa, não dos outros hospedeiros, como os morcegos. Nós facilitamos o “salto” entre espécies, ou o spillover, como chamamos na ciência. Foi nosso estilo de vida que possibilitou o sucesso do SARS-CoV-2 como agente da atual pandemia.
Angélica Campos Impedir o surgimento de novos vírus é quase impossível. Eles fazem parte da dinâmica da vida em nosso planeta. Novas pandemias podem sim ser controladas se nós (pessoas) estivermos atentos ao fato em si (o espalhamento da doença), e seguirmos os passos recomendados para o controle da mesma.
O que podemos fazer, enquanto sociedade, para minimizar o aparecimento de novas pandemias é direcionar a tomada de decisões para que diminuam a destruição de habitats naturais (como florestas e reservas ambientais) e restringir o contato entre animais silvestres e humanos. Ou seja, uma mudança na exploração e crescimento desenfreado em áreas florestais ainda intactas.
Aqui não digo que temos que parar de plantar soja ou criar gado, nós precisamos também comer, afinal somos seres vivos. O que precisamos é de um planejamento que leve em conta também a preservação destes habitats que na verdade nos protegem dos escapes de vírus; bem como o uso de técnicas que possibilitem o uso da terra de forma sustentável, como é preconizado pela Saúde Global – ou OneHealth como é mais conhecida [a abordagem multidisciplinar da Organização Mundial da Saúde que engloba o controle de zoonoses]. Tudo está interligado: planeta saudável, saúde animal e consequentemente saúde humana.
Eu sei que para muitos a ciência não representa um lugar de destaque como outras profissões, mas eu posso dizer, como cientista que sou, que nosso trabalho é essencial para manter a vida em nosso planeta. A ciência em todas as áreas possibilita a criação de mecanismos que aumentam nosso tempo e qualidade de vida. É a partir do estudo e conhecimento científico que podemos hoje ler um jornal na palma da nossa mão com um aparelho celular. É graças aos cálculos matemáticos científicos que podemos viajar de avião ou mesmo de navios com segurança igual ou maior que a de atravessar uma rua caminhando. A ciência não é a inimiga, os morcegos não são os inimigos, nosso maior inimigo hoje é negar a situação em que nos encontramos e não nos adaptarmos.
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