‘Bolsonaro usa militares para forçar a barra na disputa política’
Isabela Cruz
21 de maio de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h43)Autor de livro sobre o perfil dos oficiais do Exército brasileiro, sociólogo Eduardo Raposo fala ao ‘Nexo’ sobre as relações da instituição com a política nacional
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O presidente Jair Bolsonaro durante celebração do Dia do Exército
O Exército brasileiro é fator importante na balança política do Brasil de 2022, ainda que provavelmente seus generais não estejam majoritariamente dispostos a apoiar o presidente Jair Bolsonaro numa tentativa de golpe. Essa é a análise do sociólogo Eduardo Raposo, professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-Rio.
Segundo Raposo, a cultura institucional do Estado brasileiro e a “fraqueza da sociedade civil” no país permitem que as Forças Armadas ainda “tutelem a vida política nacional”. “Isso é uma fragilidade da democracia nacional”, disse ele ao Nexo . Pela Constituição, Exército, Marinha e Aeronáutica são instituições que integram a burocracia do Estado, sem terem qualquer poder de intervenção sobre os Poderes da República (Executivo, Legislativo e Judiciário), ao contrário do que costuma dizer Bolsonaro e seus apoiadores mais radicais.
Raposo afirma, no entanto, que o Exército não é unitário em termos de mentalidades e, apesar de estar junto com o presidente em situações como as celebrações da ruptura democrática de 1964, não pode ser considerado uma instituição bolsonarista.
O professor é autor de “Como pensam os oficiais do Exército brasileiro”, lançado neste mês de maio pela Hucitec Editora. Assinado junto com Maria Alice Rezende de Carvalho e Sarita Schaffel, o livro analisa as respostas dadas a partir de 2013 por mais de 2.700 militares a um longo questionário que buscou traçar seu perfil em termos sociais e políticos.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone nesta sexta-feira (20), Raposo falou sobre as raízes do comportamento político do Exército, o que esperar da relação da instituição com Bolsonaro, e o que ele considera ser necessário mudar no país para que os militares não extrapolem suas funções constitucionais.
Eduardo Raposo As Forças Armadas são uma instituição total. Isto é, uma instituição que vai impregnando seus membros com seus próprios valores. O Exército brasileiro continua sendo uma instituição total, muito fechada, cultivando seus valores próprios.
Mas já há modificações nisso, em função da globalização e de fatos como alunos terem celulares, com acesso à comunicação com o mundo externo mais fácil, filhos e as esposas estarem na vida civil, militares estudarem em universidades civis. Toda essa socialização dos militares, nós frisamos bastante nesse trabalho. A entrada das mulheres nas Forças Armadas também foi uma modificação estrutural. Daqui a pouco vamos ter mulheres generais. É um acontecimento importante.
Perguntamos aos oficiais quais são os fatores considerados prejudiciais à democracia, e eles revelaram conservadorismo em algumas respostas. O fator mais apontado, 48,6%, foi o baixo nível educacional da população. Depois, com 39%, vem a corrupção, seguida da falta de organização política do povo. Só depois vem a desigualdade social.
Eduardo Raposo Com Bolsonaro, que é um entusiasta do golpe de 1964 e sobretudo da “linha dura”, essa dimensão ganhou força dentro das Forças Armadas. É uma administração que tenta cooptar os militares, inclusive com o aumento de cargos oferecidos a eles.
Mas, apesar da hierarquia e da disciplina, não creio que o Exército seja uma instituição completamente unitária. Existem mentalidades diferentes. Militares foram afastados do governo porque não comungavam com a ideia de Bolsonaro cooptar o Exército, chamá-lo de “meu Exército”.
Bolsonaro, por exemplo, demitiu [o general da reserva Carlos Alberto dos] Santos Cruz, que é um general importante e fala abertamente que os militares não vão deixar de se submeter às funções constitucionais de uma instituição de Estado para seguir um líder político.
Quando o [então] ministro da Defesa [general da reserva] Fernando Azevedo e Silva se afastou em 2021, os chefes militares do Exército, da Marinha e da Aeronáutica pediram demissão. Essas pessoas expressam também o que existe dentro do Exército. Existe um contingente muito mais bolsonarista nas polícias militares estaduais.
As contestações ao sistema eleitoral são cortina de fumaça para tirar o foco do fracasso das políticas públicas do governo. E apenas uma parte dos militares aderiu a isso. O jogo ainda está sendo jogado.
Eduardo Raposo Os militares tradicionalmente sempre tiveram ingerência política, sobretudo num país onde a sociedade civil ainda é muito fraca. Mas Bolsonaro teve apoio não só das Forças Armadas.
Ele foi eleito em função de diferentes variáveis. Primeiro, o desejo de uma parte da população por um padrão mais conservador nos costumes, ligado à relação dessas pessoas com igrejas neopentecostais. Outro fator foram as promessas de políticas econômicas liberais. Também havia o desejo de mais ordem, de mais segurança pública, de combate à corrupção. Então não foram só os militares que elegeram Bolsonaro.
Agora, Bolsonaro dá um protagonismo muito grande para os militares. Num país como o Brasil, onde os militares ainda exercem uma tutela sobre a política nacional — uma fragilidade da democracia brasileira —, ele tenta cooptar de tudo quanto é maneira os militares para forçar a barra na disputa política.
Eduardo Raposo Não dá para medir, há apostas em todos os sentidos. Mas acho que a sociedade brasileira está mais forte, e as principais instituições nacionais não são a favor de um golpe. A Igreja está a favor disso? Não tá. O Senado? Não está. O sistema financeiro-industrial? Não está. Não vejo nenhum grupo social forte, organizado, apoiando isso.
Acho muito difícil que generais e oficiais importantes estejam dispostos a entrar numa aventura de um golpe e, no dia seguinte, ter contra si a sociedade civil, instituições importantes, o sistema internacional. Qual é a vantagem disso? O desgaste dos militares durante o regime militar, de 1964 a 1985, foi muito grande. Para eles recuperarem o prestígio popular, isso há pesquisas que mostram, demorou muito.
Eduardo Raposo Lógico que afeta. Bolsonaro colocou militares em tudo quanto é lugar. As políticas públicas de Bolsonaro foram muito ruins. Essa politização, ideologização, esconde um pouco uma análise dos resultados das políticas públicas. São muito fracos, do ponto de vista econômico, internacional, ecológico, social. Lógico que isso desgasta. Existe um movimento muito grande de politizar para evitar uma análise mais objetiva dos resultados das políticas públicas.
Eduardo Raposo O desenvolvimento das Forças Armadas se confunde um pouco com o próprio desenvolvimento institucional brasileiro. Aqui no Brasil não tivemos uma ruptura muito grande com o Estado, revoluções burguesas que tivessem se contraposto ao Estado, ainda na figura do rei. Viemos do mundo ibérico, onde nunca houve limitações importantes à presença do Estado. E o Exército é uma parte do Estado.
Mas essa tutela acontece por causa da fragilidade da sociedade civil. A burguesia não é forte, os organismos não têm força suficiente, a própria consciência da sociedade civil é fraca, pouco organizada. É preciso haver um amadurecimento da sociedade civil, para cobrar um Estado que hoje entrega péssimos serviços, uma péssima democracia.
Eduardo Raposo Esse negócio de a sociedade civil se meter nisso acho que é um pouco ambíguo. Quem é que vai mexer nisso? É o governo, formado por alguns partidos políticos? Controle social? O que é controle social, um controle político, não é?
Os militares têm que estar submetidos a uma ordem constitucional, ao presidente da República, que é civil e foi eleito democraticamente. Mas isso não quer dizer que os currículos da Aman [Academia Militar das Agulhas Negras], das escolas superiores devam ter um controle político stricto sensu, de uma comissão do Congresso, por exemplo. Acho que é muito forçada essa barra.
Os militares são estratégicos demais para alguma coalizão de partidos definir esse currículo. Se for uma comissão técnica, acompanhando o movimento internacional das atribuições dos militares, isso tudo bem, vai acontecer mais cedo ou mais tarde. Mas não uma coisa conjuntural, política.
Eduardo Raposo Mesmo quando os militares que estavam promovendo a redemocratização entraram, e foram afastados os militares da “linha dura”, eles romperam, mas não estabeleceram conflitos explícitos para a sociedade civil.
Na Argentina, isso [o processo de transição] foi mais radical, os militares tiveram de responder a processos, alguns foram presos. Mas aqui no Brasil não é assim. Até hoje não foi.
[Emílio] Médici, que foi presidente no período mais terrível do regime militar, foi aplaudido no Maracanã, porque o país crescia 10% ao ano e porque atendia a um lado autoritário da sociedade brasileira.
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