Entrevista

‘Lulismo criou tensão ao começar a alterar distância social’

Conrado Corsalette

07 de dezembro de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h50)

Leia entrevista do cientista político André Singer para o podcast Politiquês na minissérie ‘Uma crise chamada Brasil’, em que ele fala sobre governos petistas, dos avanços à crise

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FOTO: MARCELLO CASAL JR/AGÊNCIA BRASIL

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André Singer, professor de ciência polítia da USP e ex-porta voz da Presidência, foi entrevistado pelo podcast Politiquês em julho de 2022 para a minissérie “Uma crise chamada Brasil”, que traça um panorama dos anos que marcaram a quebra do pacto social da Nova República. Ele aparece no primeiro episódio, “Fora da Ordem” , sobre o colapso financeiro global de 2008 e a situação do governo Luiz Inácio Lula da Silva no período, e no quarto episódio, “Da euforia à fome” , sobre a trajetória econômica brasileira e a recessão no governo Dilma Rousseff.

O Nexo traz agora a transcrição da conversa que teve com Singer. Ao longo de dezembro de 2022 e janeiro de 2023, as entrevistas realizadas para a minissérie serão publicadas por escrito, a fim de que possam ser fonte de consulta dos leitores do jornal.

O que é o ‘lulismo’, conceito que aparece em seus livros ‘Os sentidos do lulismo’ e ‘O lulismo em crise’?

ANDRÉ SINGER O lulismo aparece como uma forma de reformismo que busca combater a pobreza sem confrontar o capital. Dessa forma o lulismo tem chance de adquirir estabilidade na sua proposta reformista, mas ao mesmo tempo é o que se poderia chamar de reformismo fraco, ou seja, um reformismo que caminha muito lentamente justamente para que não haja instabilidade política a partir de um confronto com o capital.

A pesquisa que realizei mostra que, à medida que o lulismo teve oportunidade de exercer o governo durante três mandatos ao longo de 12 anos — considero que o segundo mandato da ex-presidente Dilma foi atípico por ter sido interrompido, não faz parte do ciclo —, ele foi capaz de implementar um conjunto de medidas voltado sobretudo ao combate à pobreza. Esse conjunto de medidas teve um efeito cumulativo bem importante. Cada uma das medidas por si só talvez não tivessem o impacto que elas acabaram tendo ao longo de 12 anos. Eu dou três exemplos: a criação do Bolsa Família, que permitiu a mais 14 milhões de famílias terem acesso a uma renda que antes não tinham. O crédito consignado que permitiu a milhões de brasileiros terem acesso a um consumo que antes não tinha e a elevação real do salário mínimo em cerca de 70% contabilizados ao longo de 12 anos.

Por que o ‘lulismo’ entra em crise?

ANDRÉ SINGER O lulismo entra em crise por um conjunto de fatores. Alguns deles são estruturais, outros são conjunturais. E eu vou me referir a apenas dois deles, um estrutural e um conjuntural. O estrutural é justamente decorrente das características do reformismo lulista, as quais eu me referi na pergunta anterior. Ou seja, à medida que as mudanças graduais foram se acumulando, aproximou-se — eu não vou dizer que tenha se chegado — de uma mudança estrutural no Brasil.

Vamos lembrar que, durante vários anos até 2014, o Brasil viveu uma situação de pleno emprego. À medida em que existe pleno emprego, os trabalhadores estão habilitados a pedir e a exigir aumentos salariais com mais condições de obterem vitórias nessas reivindicações, de tal forma que além dos fatores que eu já mencionei, que são diretamente ligados à ação lulista, houve também efeitos indiretos, como, por exemplo, o aumento de 30% no valor real dos salários. Não estou me referindo aqui ao salário mínimo, mas sobretudo aos salários que têm database, ou seja, que têm negociação a partir de categorias definidas.

Esse pleno emprego e esse aumento salarial geral criaram uma situação de demanda por mão de obra e, ao mesmo tempo, de uma maior capacidade de exigência dos trabalhadores. Num caso específico, que é um exemplo interessante — não é o fator fundamental, mas é um caso interessante —, é o dos empregados domésticos, com a promulgação de uma legislação que os favoreceu, em termos de direitos. Além do aumento geral de salários, eles passaram a ter melhores condições de trabalho, que aliás era absolutamente indispensável no Brasil. Esse conjunto de mudanças que se acumulou levou a uma grande tensão à medida que passou a questionar determinadas características de distância social, que eram históricas no Brasil e que estavam, por assim dizer, começando a se alterar.

No ensaio ‘Cutucando onças com varas curtas’ você aponta uma ‘unidade antidesenvolvimentista’ de empresários contra Dilma. Houve uma espécie de sabotagem ao modelo desenvolvimentista adotado pela então presidente? Por quê?

ANDRÉ SINGER A relação entre a ex-presidente Dilma Rousseff e o empresariado, sobretudo o empresariado industrial, foi marcada por uma grande oscilação. A ex-presidente Dilma, no seu primeiro mandato, buscou fazer um programa, executar um programa que atendesse aos interesses dos industriais. Ela buscou diminuir os juros, reduzir o preço da eletricidade, desonerar a folha de pagamentos, entre outras muitas iniciativas voltadas para uma reindustrialização do país. Desse ponto de vista, era esperado que houvesse um apoio entusiástico do empresariado da indústria ao governo Dilma, o que de fato até certo ponto aconteceu, até o ano de 2012, particularmente até o final de 2012.

De 2013 em diante começa a se perceber uma mudança desse clima na direção de uma insatisfação e uma oposição dos empresários industriais ao governo Dilma, acompanhando um sentimento geral de desgosto do capital em relação à orientação do governo. Por que isso aconteceu? Aí há várias interpretações. A hipótese com a qual eu trabalho é que, ao tomar algumas atitudes como, por exemplo, forçar a redução dos juros e particularmente a redução do spread bancário, a ex-presidente Dilma entrou em conflito com o núcleo do capital que é o setor financeiro. E nessa medida ela mobilizou a direção, por assim dizer, do capital na contramão das suas intenções, arrastando consigo essa mobilização contrária ao seu governo também os empresários industriais, acabando por formar aquilo que eu chamo de uma frente burguesa antidesenvolvimentista.

Há economistas que apontam o endividamento das empresas como justificativa para a ausência de investimentos mesmo com todos os benefícios fiscais e criticam a visão de quem vê essa ‘unidade antidesenvolvimentista’. Como avalia essa leitura?

ANDRÉ SINGER Há várias hipóteses explicativas de por que os empresários industriais mudaram de atitude em relação ao governo Dilma Rousseff. Uma dessas hipóteses alternativas é de que houve uma queda da lucratividade. Uma outra hipótese poderia ser a de que teria havido um aumento do endividamento das empresas. Todas essas hipóteses são válidas e merecem ser pesquisadas.

O que me parece reforçar a hipótese de uma frente antidesenvolvimentista está no fato de que os empresários industriais não procuraram mostrar à ex-presidente Dilma quais seriam as alternativas, se é que eles estavam tendo problemas causados pela política do governo, que não me parece ser o caso, mas pode ser que novas pesquisas confirmem outras hipóteses. Mas, mesmo nesse caso, eu insisto, seria de se esperar de aliados que eles procurassem convencer o governo de que novas medidas do tipo A, B ou C fossem necessárias para corrigir eventuais problemas, o que não houve.

O que houve foi a adesão a uma proposta bastante ortodoxa, bastante neoliberal de ajuste fiscal, o que acabou efetivamente ocorrendo no segundo mandato [de Dilma] com consequências desastrosas para a própria presidente em termos de popularidade e também para o país.

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